"TRAGÉDIA CARIOCA"
"A mão de obra do varejo de drogas é, predominantemente, masculina, negra, muito jovem. Nasceu em lares de baixíssima renda. Integra famílias numerosas chefiadas por mulheres, carece de referência paterna — os homens foram embora, estão mortos, presos ou são desconhecidos. Estudou pouco e abandonou a escola ainda no ciclo fundamental, com idade entre 11 e 14. Já trabalhou fora do tráfico (na construção civil, no comércio, em lava a jato, como ambulante). No crime, ganha até três salários mínimos, ajuda financeiramente em casa".
"Tragédia carioca", Flávia Oliveira, O Globo, Opinião, pág. 3, 03 de agosto de 2018. |
Dois diagnósticos separados por 12 anos escancaram desinteresse do poder público em livrar crianças do tráfico no Rio
O Observatório de Favelas tornou público um dos mais profundos — e pesarosos — diagnósticos sobre adolescentes e jovens envolvidos com o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. “Novas configurações das redes criminosas após a implantação das UPPs” é o segundo estudo realizado, num intervalo de 12 anos, pela organização da sociedade civil encravada na Maré, conjunto de 16 favelas na Zona Norte carioca. O hiato temporal, do tamanho de uma geração, dá a medida do que tantos meninos de comunidades populares poderiam ser, não fossem estigmatizados, negligenciados, desprezados por um poder público mais empenhado na brutalidade que no acolhimento.
Os pesquisadores entrevistaram, de maio de 2017 a abril deste ano, 261 jovens a serviço do tráfico — 150 em favelas, 111 em instituições socioeducativas. Entre 2004 e 2006, o Observatório acompanhara a trajetória de 230 crianças e adolescentes; no par de anos, 45 morreram. A tragédia carioca é constatar que, de uma pesquisa a outra, não houve esforços oficiais para interromper o ciclo de vulnerabilidade que aproxima crianças do crime cada vez mais cedo. Na década passada, seis em cada dez meninos ingressaram na rede do tráfico entre os 12 e os 15 anos; 7,8% antes dos 12. No levantamento recém-concluído, 54,4% se incorporaram aos grupos criminosos dos 13 aos 15; 14,5%, o dobro de antes, com menos de 12 anos. Eles não tinham nascido quando o primeiro diagnóstico ficou pronto, mas repetiram — e intensificaram — a trajetória da geração anterior, enquanto a quadrilha chefiada pelo ex-governador Sérgio Cabral saqueava os cofres do Estado do Rio.
"Entre 2004 e 2006, o Observatório acompanhara a trajetória de 230 crianças e adolescentes; no par de anos, 45 morreram".
"Na década passada, seis em cada dez meninos ingressaram na rede do tráfico entre os 12 e os 15 anos; 7,8% antes dos 12. No levantamento recém-concluído, 54,4% se incorporaram aos grupos criminosos dos 13 aos 15; 14,5%, o dobro de antes, com menos de 12 anos."
A mão de obra do varejo de drogas é, predominantemente, masculina, negra, muito jovem. Nasceu em lares de baixíssima renda. Integra famílias numerosas chefiadas por mulheres, carece de referência paterna — os homens foram embora, estão mortos, presos ou são desconhecidos. Estudou pouco e abandonou a escola ainda no ciclo fundamental, com idade entre 11 e 14. Já trabalhou fora do tráfico (na construção civil, no comércio, em lava a jato, como ambulante). No crime, ganha até três salários mínimos, ajuda financeiramente em casa.
O perfil dos traficantes meninos é o retrato da falência — ou da ausência — de políticas de inclusão social. Todos estiveram, desde muito cedo, vinculados ao setor público, via escola. Tivemos os meninos nas mãos e, por incompetência ou desinteresse, deixamos que escapassem. “Há uma correlação muito forte entre evasão escolar e permanência no tráfico. As duas pesquisas mostram a mesma coisa. Então, uma escola interessante, que se ocupe do aluno e dê a ele perspectiva de futuro, é fundamental”, diz Jailson Souza e Silva, fundador do Observatório de Favelas e um dos coordenadores das duas pesquisas.
"... seis em cada dez adolescentes dizem que entraram no tráfico para ajudar a família; 47,5% queriam ganhar dinheiro; 15,7% tinham dificuldade para conseguir emprego".
No levantamento de 2018, seis em cada dez adolescentes dizem que entraram no tráfico para ajudar a família; 47,5% queriam ganhar dinheiro; 15,7% tinham dificuldade para conseguir emprego. Quase metade já tem filhos, e 70% estão em relacionamentos estáveis, vivendo ou não com o cônjuge. A entrada no crime tem mais a ver com sustento e desejo de consumo do que com adrenalina, sensação de poder, fascínio por armas, apreço pelo risco. É outro mito que cai por terra.
Dois em cada três jovens trabalham mais de dez horas por dia, 48% nunca folgam. Dos 261 entrevistados, 141 dizem que deixariam o crime se arrumassem um emprego formal, 40,2% já se afastaram do tráfico voluntariamente; 38,7% têm pouca ou nenhuma satisfação com a vida que levam. Na maior parte das vezes, o tráfico incorpora crianças e adolescentes reféns de um ciclo de pobreza, pouca formação e falta de oportunidades. A eles oferece dinheiro, pertencimento e vida social, quando outros vínculos já foram rompidos.
"Dois em cada três jovens trabalham mais de dez horas por dia, 48% nunca folgam. Dos 261 entrevistados, 141 dizem que deixariam o crime se arrumassem um emprego formal, 40,2% já se afastaram do tráfico voluntariamente; 38,7% têm pouca ou nenhuma satisfação com a vida que levam".
Os pesquisadores pretendem entregar ao futuro governador eleito do Rio um conjunto de propostas. Querem, de um lado, alterar a política de segurança ancorada em confrontos que só produzem cadáveres, inclusive de policiais; de outro, acenar com permanência na escola, qualificação profissional, acesso ao mercado de trabalho. E, quem sabe, contar outra história nos próximos anos.
Fonte: O Globo
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Novas Configurações das Redes Criminosas após a Implantação das UPPs
Desenvolvida pelo eixo de Segurança Pública e Direito à Vida do Observatório de Favelas, a pesquisa sobre as novas configurações das redes criminosas após a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), no Rio de Janeiro, pretende oferecer subsídios para a construção de políticas e ações públicas que visem a superação da lógica da “guerra às drogas”. O estudo busca aprofundar a compreensão sobre o perfil e as práticas de jovens inseridos na rede do tráfico de drogas no varejo e as dinâmicas que afetam o campo da saúde pública.
Para alcançar os objetivos propostos foram entrevistados 150 jovens inseridos na rede do tráfico de drogas no varejo em favelas do Rio de Janeiro e 111 adolescentes no Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE). Além disso, também foram ouvidos profissionais que atuam em serviços de saúde e policiais. As entrevistas foram realizadas entre maio de 2017 e abril de 2018.
Além do perfil dos jovens inseridos no tráfico de drogas, o estudo aborda aspectos como configuração familiar, trajetória escolar, experiências de trabalho, relação com as drogas e padrões de consumo, relação com os serviços de saúde, experiências de violência, motivações para o ingresso, permanência e saída da rede ilícita.
Realização: Observatório de Favelas
Apoio: Open Society Foundations
Acesse a pesquisa na íntegra aqui
Fonte: Observatório de Favelas
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