Cientistas descobriram um berçário de plantas ameaçadas de extinção, conta Ana Lúcia Azevedo
por Ana Lúcia Azevedo
19/02/2017 4:30 / Atualizado 19/02/2017 8:08
Quando deixado em paz, o tachi (Tachigalia paratyensis) alcança 25 metros, mais alto do que alguns prédios que se erguem não muito longe dele. Mas o tachi em questão é ainda arbusto, e sua presença marca a entrada num dos caminhos que levam à Floresta Atlântica em toda a sua glória - onde o céu é verde e o solo, escuro. O tachi vive na Mata do Pai Ricardo, um quinhão do Parque Nacional da Tijuca voltado para a Zona Sul. De nome encantado e origem misteriosa, cientistas vêem nela quase magia, manifestada em regeneração natural da Mata Atlântica, que impressiona pela velocidade e a riqueza.
- A Mata do Pai Ricardo é um tesouro. A diversidade é maior, as árvores são muito grandes, a copa é fechada. Um patrimônio do Rio. Essa floresta é um pedaço de Mata Atlântica em seu desenvolvimento máximo. Não é reflorestamento. Nenhuma outra metrópole do mundo tem algo igual - afirma Rogério Ribeiro do Oliveira, professor do Departamento de Geografia e Meio Ambiente da PUC-Rio e um dos maiores especialistas na Floresta da Tijuca.
Pedaço de Mata Atlântica em seu desenvolvimento máximo, é uma expressão de rigor científico que se traduz em mata original, aquela que já existia antes da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro entrar no mapa e transformar a paisagem. O Pai Ricardo dissolve o mito de que a Floresta da Tijuca é somente obra e graça do trabalho do homem. Partes inteiras de mata são remanescentes de florestas antigas. Outras partes foram reflorestadas em 1860. Mas a Mata do Pai Ricardo é a joia da coroa delas, ela exala mistério.`
'O valor desta mata é incalculável. Sobreviveu ao carvão, ao café e à metrópole’. Ana Luiza Coelho Netto, professora titular do Laboratório de Geo-Hidroecologia (Geoheco) da UFRJ. Sobre a Mata do Pai Ricardo
Suas árvores estão entre as maiores e mais antigas da cidade - veneráveis gigantes acima de 20 metros de altura e centenas de anos de vida. Fica de frente para a Zona Sul, acima do Horto. Mas quase ninguém ouviu falar dela. Se estende por cerca de 200 hectares - ou 200 campos de futebol. E tem ainda o próprio Pai Ricardo, que deu nome à floresta, a um rio e a um morro e desapareceu na História sem deixar rastro.
- É um remanescente preciosíssimo. A meu ver, precisa de proteção especial. O valor desta mata é incalculável. Sobreviveu ao carvão, ao café e à metrópole. Não é muito extensa, mas representa o mais próximo que o carioca tem da Mata Atlântica em sua glória. Nos presta ainda serviços ambientais, protege as nascentes, ameniza o calor, ajuda a limpar o ar, faz História - destaca Ana Luiza Coelho Netto, professora titular do Laboratório de Geo-Hidroecologia (Geoheco) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A importância do Pai Ricardo não é novidade para pesquisadores e conhecedores da Floresta da Tijuca. Está no Plano de Manejo do Parque Nacional da Tijuca. É destacada por estudos que remontam à década de 1940 do século XX. Por algum motivo, nunca se tornou muito conhecida.
- É um mito que a floresta é toda replantada. O Pai Ricardo está bem preservado, e é um exemplo de que isso não é verdade. Por que a floresta sobreviveu já é outra história. Ainda não se compreende bem a dinâmica dos antigos usos da mata - observa o chefe do Parque Nacional da Tijuca, Ernesto Viveiros de Castro. Ana Luiza e Rogério há mais de três décadas desenvolvem estudos no Maciço da Tijuca. Muito do que se sabe sobre a região resulta de suas pesquisas. Porém, nem eles esperavam descobrir agora, a poucos metros de onde passa a Trilha Transcarioca, um berçário da Mata Atlântica em pleno desenvolvimento. Espécies raras brotam e se conectam para regenerar a complexidade da floresta.
- Se não estivesse aqui e visse, não acreditaria na velocidade com que a mata se renova. A força dessa floresta me emociona. O que assistimos é muito especial - frisa Ana Luiza.
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Jequitibá gigante fica na Mata do Pai Ricardo
Jequitibá gigante fica na Mata do Pai Ricardo
Grandes árvores podem ser vistas ao longo das trilhas e caminhos na Mata do Pai Ricardo - Custódio Coimbra / Agência O Globo |
RIO - O berçário que encanta os cientistas fica onde o maior gigante do Pai Ricardo está. O Jequitibá com nome tão maiúsculo quanto o tamanho chegava aos 40 metros de altura. Deu nome a uma trilha e a uma cachoeira, referências dos frequentadores da floresta. Mas em 2013, durante uma ventania, quebrou. A copa veio abaixo e levou com ela outras árvores e arbustos.
- Ele tem agora 22 metros. Seu tronco mede 3,2 metros de diâmetro. Esse camarada viveu mais de dois mil anos. O vento o quebrou porque seu tronco estava velho e frágil. Seu tempo já tinha acabado - diz Oliveira.
O Jequitibá morreu. Mas não foi embora. Morto, ele dá vida à floresta.
- Milhares de fungos cobrem o tronco e as raízes e os decompõem. Há literalmente milhões de micro-organismos que reciclam toda a colossal quantidade de matéria orgânica do Jequitibá e a devolvem à mata em forma de nutrientes - explica Ana Luiza.
Mais do que apenas isso, com a morte do gigante, fez-se a luz. As grandes árvores criam um mundo de sombra sob as copas. Nele há todo um banco de genético de outras plantas à espera de uma oportunidade, luz para emergir e iniciar um novo ciclo. Isso pode levar décadas, séculos ou milênios.
- Assistimos a essa parte adormecida da floresta despertar. Quando uma clareira se abre e a mata em volta é saudável, oferece nutrientes e umidade, uma revolução acontece. Esse povo da luz, arbustos e plantas menores, desperta, começa a emergir, ganha espaço. Crescem também os filhotes das árvores que um dia serão gigantes, fecharão o céu da mata e darão início a um novo ciclo. Um dia, há muitos séculos, esse jequitibá foi como essas plantinhas que vemos aqui. Cresceu, sobreviveu por eras e se tornou ele próprio o céu. Com a sua morte, um novo ciclo começou - destaca Rogério Oliveira.
- Ele tem agora 22 metros. Seu tronco mede 3,2 metros de diâmetro. Esse camarada viveu mais de dois mil anos. O vento o quebrou porque seu tronco estava velho e frágil. Seu tempo já tinha acabado - diz Oliveira.
O Jequitibá morreu. Mas não foi embora. Morto, ele dá vida à floresta.
- Milhares de fungos cobrem o tronco e as raízes e os decompõem. Há literalmente milhões de micro-organismos que reciclam toda a colossal quantidade de matéria orgânica do Jequitibá e a devolvem à mata em forma de nutrientes - explica Ana Luiza.
Mais do que apenas isso, com a morte do gigante, fez-se a luz. As grandes árvores criam um mundo de sombra sob as copas. Nele há todo um banco de genético de outras plantas à espera de uma oportunidade, luz para emergir e iniciar um novo ciclo. Isso pode levar décadas, séculos ou milênios.
- Assistimos a essa parte adormecida da floresta despertar. Quando uma clareira se abre e a mata em volta é saudável, oferece nutrientes e umidade, uma revolução acontece. Esse povo da luz, arbustos e plantas menores, desperta, começa a emergir, ganha espaço. Crescem também os filhotes das árvores que um dia serão gigantes, fecharão o céu da mata e darão início a um novo ciclo. Um dia, há muitos séculos, esse jequitibá foi como essas plantinhas que vemos aqui. Cresceu, sobreviveu por eras e se tornou ele próprio o céu. Com a sua morte, um novo ciclo começou - destaca Rogério Oliveira.
Perto do gigante morto, um arbusto já conquistou seu lugar. É uma guapeba (Chrysophyllum imperiale) ou marmeleiro-do-mato. Mas é o nome de árvore-do-imperador que talvez explique melhor sua sina. Levada quase à extinção devido à exploração de sua madeira, essa espécie que chega aos 25 metros era considerada ótima para a construção naval. Caiu nas graças dos Pedros I e II. Este último a enviava para jardins botânicos, queria preservá-la. Mas ficou cada vez mais rara depois do Império. Relatos não comprovados dizem que na jovem República teria deixado de ser protegida por sua associação com o imperador.
- Essa espécie é só pequeno exemplo do que temos aqui - explica Oliveira.
Não se sabe por que o café não entrou ali. A Mata do Pai Ricardo não é intocada, mas é preservada. Rogério Oliveira acredita que os muitos matacões - imensos blocos de rocha - e a declividade acentuada do terreno possam ter dificultado o estabelecimento de plantações.
- É mágico o que observamos acontecer. O processo está muito mais rápido do que imaginamos - acrescenta a doutoranda em geografia da PUC-Rio Joana Stingel Fraga.
Embora a fauna não seja tão rica quanto a flora, pois a Mata do Pai Ricardo é como uma ilha cercada de cidade e estrada, alguns animais encontram ali refúgio. Esquilos e macacos são comuns. Nem tanto quanto as cobras. O oco do velho Jequitibá é um paraíso para elas, que encontram lá abrigo e alimento, na forma de ratinhos silvestres e aranhas, por exemplo.
Em outro ponto do Pai Ricardo, um pau d'alho centenário de cerca de 30 metros de altura é alcançado 20 metros fora da trilha. O pé afunda no tapete de folhas, cipós fecham o caminho. Cobras também se abrigam nos tocos. Ali, a floresta é escura, confunde com facilidade e tira referências. Não é território para passeios. E os especialistas esperam que assim permaneça.
- O que não pode é a agressão à mata. Há guimbas de cigarro, restos de comida, de oferendas nas trilhas. As pessoas querem aproveitar a natureza e a destroem, violam, desrespeitam. Espero que haja mais consciência e carinho por um tesouro que é de todos - lamenta Ana Luiza.
Para sobreviver a floresta, como a cidade à volta dela, precisa de paz.
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O misterioso Pai Ricardo
O chão da floresta abriga milhares de espécies de micro-organismos - Custódio Coimbra / Agência O Globo |
Tão envolvida em sombras quanto as curvas da floresta à qual dá nome é a figura do Pai Ricardo. Teria sido um dos escravos que trabalharam com o major Manoel Gomes Archer no histórico reflorestamento do Maciço da Tijuca, iniciado em 1862. Outra possibilidade é que foi um líder espiritual das religiões afro-brasileiras. A primeira é considerada pouco provável uma vez que não há registro confiável de um escravo com esse nome.
O fato é que a Floresta da Tijuca está carregada de espiritualidade em nomes como o da Cachoeira das Almas, um antigo lugar de culto. E estudos de Rogério Oliveira já revelaram existir relação entre as religões afro-brasileiras e a preservação de árvores consideradas sagradas, como as figueiras. Sobre o Pai Ricardo, porém, há somente mistério.
- Na verdade, a história da Floresta da Tijuca é muito menos conhecida e documentada do que se imagina. A própria ideia de que tudo foi replantado é um mito. O Archer e seus sucessores foram importantes. Mas reflorestaram apenas uma parte - observa o historiador ambiental José Augusto Pádua, um dos coordenadores do Laboratório de História e Natureza do Instituto de História da UFRJ.
Segundo Padua, foi a própria natureza que fez a maior parte do trabalho:
- A montanha é a maior amiga da floresta. A inclinação, as pedras dificultam o acesso e a destruição. Não é fácil derrubar e arrastar uma árvore grande numa encosta muito inclinada. Quem regenerou mesmo a maior parte da floresta foi a natureza - afirma Pádua.
Detalhe da vegetação da Floresta da Tijuca - Custódio Coimbra / Agência O Globo |
Mesmo lugares preservados como a Mata do Pai Ricardo guardam cicatrizes de antigos usos. Lá há vestígios de carvoarias dos séculos XVIII e XIX. Essas carvoarias nada mais eram do que fornos dentro da própria mata onde era produzido o carvão vendido na cidade. Os fornos desapareceram, mas o lugar onde existiam são identificados pelos platôs claramente artificiais, planos em meio à encosta íngreme. O solo sob as folhas secas é escuro, puro carvão.
- Os carvoeiros são parte importante e esquecida da história do Rio. Mas carvoarias não contam só as histórias dos homens. Contam também as da floresta - explica o doutorando da PUC-Rio Gabriel Paes.
Estudando o carvão é possível saber que árvore foi queimada, o que dá uma ideia da composição da floresta.
- Ele mantém a anatomia das espécies - acrescenta.
Só não é possível descobrir quem foi o Pai Ricardo.
Fonte: O Globo
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