sexta-feira, 9 de agosto de 2019
É preciso mudar a maneira como se produz alimento no mundo, alerta IPCC
Elton Alisson | Agência FAPESP O modelo de produção agropecuária extensivo praticado nas últimas décadas para atender à demanda global por alimentos tem causado um aumento das taxas de uso e ocupação da terra em escala sem precedentes. Esses processos têm contribuído para a perda de biodiversidade e de ecossistemas, degradação de solo e aumento das emissões de gases de efeito estufa, constata o relatório especial divulgado nesta quinta-feira (08/8) pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) da Organização das Nações Unidas (ONU), elaborado por 107 cientistas, de 52 países.
Entre as medidas propostas no texto para melhorar a gestão do uso da terra estão reduzir o desmatamento de florestas tropicais, replantar vegetação nativa para sequestrar e retirar dióxido de carbono (CO2) da atmosfera e compatibilizar o aumento da produção de alimentos com a sustentabilidade ambiental.
Um sumário para os formuladores de políticas do relatório especial sobre mudanças climáticas e uso da terra do IPCC também foi lançado ao fim de um encontro de cientistas em Genebra, na Suíça, após ter sido aprovado por 195 países.
Elaborado ao longo dos dois últimos anos, o documento avaliou como o uso da terra contribui para as mudanças climáticas e, reciprocamente, como as alterações climáticas afetam a terra. Para isso, foi feita uma revisão de mais de 7 mil artigos científicos publicados sobre o tema.
“Esse relatório é diferente dos demais já publicados pelo IPCC porque foca pouco na redução das emissões de gases de efeito estufa e muito mais nos impactos das transformações que têm ocorrido nos ecossistemas terrestres no clima”, disse à Agência FAPESP Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG) e um dos coautores do segundo capítulo do relatório .
Outros autores brasileiros da publicação são Humberto Barbosa, pesquisador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (LAPIS) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Luís Gustavo Barioni, pesquisador da Embrapa Informática Agropecuária, e Regina Rodrigues, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
De acordo com o relatório, desde 1961, 5,3 milhões de quilômetros quadrados (km2) de terra – o equivalente a cerca de dois terços da área da Austrália – foram convertidos para o uso agrícola no mundo. A partir desse mesmo ano, o uso de fertilizantes inorgânicos aumentou nove vezes e o uso de água para agricultura de irrigação duplicou.
O consumo de carne mais do que dobrou em todo o mundo também desde 1961 e, consequentemente, aumentou 1,7 vez as emissões de metano pelo gado. As emissões de óxido nitroso para a atmosfera, em função da aplicação de fertilizantes nitrogenados em pastagem, também mais do que duplicaram.
“Estamos vendo que está ocorrendo um crescimento enorme das emissões de gases de efeito estufa por atividades agropecuárias”, disse Artaxo.
Estima-se que 23% do total das emissões humanas de gases de efeito estufa no período entre 2003 e 2012 derivam da agricultura, silvicultura (produção de madeira) e outros tipos de uso da terra, e que as emissões de CO2 pelo desmatamento diminuíram no início dos anos 1960 e se estabilizaram em altos níveis entre 2008 e 2017.
A redução das emissões de gases de efeito estufa da agropecuária, juntamente com todos os outros setores econômicos, será essencial para que o aquecimento global seja mantido abaixo dos 2 oC, aponta o relatório.
“Terrenos já em uso poderiam alimentar o mundo em um clima em mutação e fornecer biomassa para energia renovável. Mas é necessária uma ação precoce, de longo alcance, em várias áreas e a implementação de medidas de conservação e de restauração de ecossistemas e biodiversidade”, disse Hans-Otto Pörtner, copresidente do grupo de trabalho II do IPCC, em comunicado da instituição.
Efeito sinérgico
Segundo o relatório, quando a terra é degradada, ela se torna menos produtiva, restringindo o que pode ser cultivado e reduzindo a capacidade do solo de absorver carbono.
Esse processo exacerba a mudança climática. Reciprocamente, esse fenômeno agrava a degradação do solo por meio do aumento do nível do mar, da intensidade de chuvas, de inundações e de períodos de seca, entre outros eventos climáticos extremos.
Como destacou Barbosa, a perda da produtividade das terras (desertificação) também tem como consequência a migração de pessoas das áreas rurais para centros urbanos. “No relatório, o número de pessoas cuja subsistência depende de terras degradadas foi estimado em 1,5 bilhão de pessoas no mundo. Provavelmente, a maioria vive na pobreza, nos países em desenvolvimento. Esses grupos sociais, incluindo mulheres e jovens, com opções de adaptação limitadas, são especialmente vulneráveis à degradação da terra e à mudança climática”, disse.
A exacerbação da degradação da terra pelas mudanças climáticas tem ocorrido, notadamente, em áreas costeiras de baixa altitude, deltas de rios, terras secas e em áreas de permafrost – o tipo de solo encontrado nas regiões polares –, apontou o relatório.
O número de pessoas que moram em áreas que sofrem de desertificação no mundo aumentou em quase 300% desde 1961, atingindo, aproximadamente, 500 milhões de pessoas.
As populações mais afetadas estão no sul e no leste da Ásia, na região do deserto do Saara, que inclui o norte da África e o Oriente Médio. Outras regiões de terra seca, como no semiárido brasileiro, também têm sofrido desertificação.
“Há uma tendência de achar que no Brasil, por exemplo, não há formação de desertos. Mas o desmatamento da Caatinga e a degradação do solo desse bioma fizeram com que já tenhamos áreas desérticas no semiárido brasileiro, onde a terra é improdutiva, embora registre chuva anual superior a 300 ou 400 milímetros”, disse Barbosa, que coordenou o capítulo sobre degradação da terra.
O relatório estabelece opções para combater a degradação do solo e prevenir ou adaptar-se a mudanças climáticas adicionais. Também examina possíveis impactos de diferentes níveis de aquecimento global.
Segundo a publicação, há um aumento nos riscos de escassez de água, seca, danos causados por incêndios, degradação do permafrost e instabilidade do sistema alimentar, mesmo para o aquecimento global em torno de 1,5 °C.
Altos riscos relacionados à degradação do permafrost e à instabilidade do sistema alimentar são identificados a 2 °C de aquecimento global.
“Em suma, o que o relatório aponta é que o mundo tem de tomar muito cuidado em relação a como aloca o uso da terra, pois isso será crítico para as mudanças climáticas”, avaliou Artaxo.
Segurança alimentar
O relatório destaca que as mudanças climáticas estão afetando todos os quatro pilares da segurança alimentar: disponibilidade (produção e rendimento), acesso (preços e capacidade de obtenção de alimentos), utilização (nutrição e culinária) e estabilidade (interrupções na disponibilidade).
A segurança alimentar será cada vez mais afetada pela mudança climática devido a quedas na produtividade dos solos – especialmente nos trópicos –, aumento de preços dos produtos, redução na qualidade de nutrientes e interrupções na cadeia de fornecimento.
Os efeitos desses impactos irão variar nos diferentes países, podendo ser mais drásticos nos de baixa renda da África, Ásia, América Latina e Caribe, aponta a publicação.
O relatório registra que cerca de um terço dos alimentos produzidos é perdido ou desperdiçado. Causas de perda de alimentos e resíduos diferem substancialmente entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, bem como entre regiões.
Reduzir essa perda e desperdício diminuiria as emissões de gases de efeito estufa e melhoraria a segurança alimentar, indica a publicação.
O relatório conclui que existem maneiras de gerenciar riscos e reduzir vulnerabilidades na terra e no sistema alimentar.
Um foco geral na sustentabilidade, juntamente com ações antecipadas, oferece as melhores chances de enfrentar as mudanças climáticas. Isso implicaria baixo crescimento populacional e redução das desigualdades, melhor nutrição e menor desperdício de alimentos.
Esses resultados poderiam permitir um sistema alimentar mais resiliente, tornar mais terra disponível para bioenergia e, ao mesmo tempo, proteger florestas e ecossistemas naturais. No entanto, sem uma ação antecipada nessas áreas, mais terra seria necessária para a bioenergia, levando a decisões desafiadoras sobre o futuro uso da terra e a segurança alimentar, pondera o relatório.
Um dos estudos que embasaram a publicação foi o relatório Bioenergy & Sustainability: bridging the gaps, produzido por pesquisadores do BIOEN e dos programas BIOTA e PFPMCG para o Comitê Científico para Problemas do Ambiente (Scope, na sigla em inglês), agência intergovernamental associada à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Lançada em 2015, a publicação fez uma análise de diversas questões relacionadas com a produção e o uso de bioenergia e sustentabilidade no mundo.
Fonte: Agência FAPESP
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