sexta-feira, 11 de julho de 2025

Artigo do WRI Brasil: benefícios econômicos das florestas no abastecimento de água na Região Metropolitana do RJ

Florestas geram benefícios sociais, ambientais e econômicos no abastecimento de água

Foto: Marizilda Cruppe/ WRI Brasil


A infraestrutura natural é um recurso importante para adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, que têm como consequência uma série de crises hídricas e estiagens nas cidades brasileiras. Investir em infraestrutura natural e aliá-la à infraestrutura convencional já existente no setor de abastecimento, como mananciais e reservatórios, pode melhorar a qualidade da água, tornar as estruturas mais resilientes e trazer benefícios econômicos.

A infraestrutura natural é uma solução baseada na natureza que envolve conservação, manejo e restauração de florestas, paisagens e ecossistemas. Quando a restauração de florestas é implementada em áreas degradas ou no entorno de reservatórios, por exemplo, benefícios como a regulação no abastecimento de água, a conservação do solo e a redução de custos na utilização de produtos químicos e energia para o tratamento da água são alcançados ao longo do tempo.

Fonte: WRI Brasil

A partir da experiência com análises do potencial da infraestrutura natural para água em cinco regiões metropolitanas no Sudeste do Brasil, consolidando dados sobre a importância e os potenciais benefícios gerados para a água e para as pessoas, o WRI Brasil publica o documento "O Estado da Arte da Infraestrutura Natural". O trabalho compila exemplos e resultados dos estudos desenvolvidos pela instituição e parceiros, e inclui reflexões dos atores locais sobre desdobramentos, lacunas e desafios identificados nas regiões após o desenvolvimento dos estudos. A intenção é apresentar dados que estimulem ações para a melhoria da gestão hídrica.


Exemplos e resultados de cinco regiões metropolitanas do Sudeste brasileiro. Acesse aqui

Conheça os benefícios da infraestrutura para a água a partir de análises do impacto da infraestrutura natural nos sistemas de abastecimento de São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Vitória.

Economia no tratamento da água em São Paulo

A restauração de 4 mil hectares de florestas em áreas prioritárias no Sistema Cantareira, que abastece a região metropolitana de São Paulo, pode reduzir a descarga de sedimentos nos reservatórios de água, melhorar sua qualidade e gerar economia no tratamento hídrico.
Com o investimento de aproximadamente R$ 119 milhões, em 20 anos, a restauração gera uma economia de R$ 338 milhões, o que contabiliza 28% de retorno do investimento.
Ainda, com a restauração de 4 mil hectares, as florestas reduzem, por ano, 18.160 toneladas de sedimentos que acabam indo para os reservatórios. Com isso, são utilizados menos produtos químicos para o tratamento da água, são realizadas menos operações para remoção de sedimentos, reduzem-se os custos de energia no tratamento e há a oportunidade de compensar emissões de gases de efeito estufa.

O estudo Infraestrutura Natural para Água no Sistema Cantareira, em São Paulo, avalia como a restauração pode salvaguardar o Sistema de Abastecimento de água do Sistema Cantareira. O relatório apresenta uma análise da infraestrutura natural para o controle de sedimentos, o efeito da infraestrutura natural nos fluxos hídricos sazonais, um roteiro para investimentos de escala em infraestrutura natural e recomendações para gestores de recursos hídricos.

Menos impacto no tratamento da água e economia para a população do Rio de Janeiro

Considerada a maior Estação de Tratamento de Água (ETA) do mundo, a ETA Guandu abastece 92% da população da região metropolitana do Rio de Janeiro. A restauração de áreas degradadas na bacia do Guandu pode reduzir impactos no tratamento da água e gera benefícios para a população do Rio.
Restaurar 3 mil hectares em áreas prioritárias resulta em uma redução de 33% nos sedimentos.
Em 30 anos, essa diminuição evita o uso de 4 milhões de toneladas de produtos químicos e 260 mil MWh em energia elétrica.
Além da economia nos custos com tratamento da água, também são possíveis benefícios como o sequestro de carbono e refúgio de fauna.

O estudo Infraestrutura Natural para Água no Sistema Guandu, Rio de Janeiro oferece análises que podem ajudar nas estratégias de saneamento e manejo de recursos hídricos. O documento apresenta uma análise de investimento de infraestrutura natural para o controle de sedimentos, e elementos para a implantação da infraestrutura natural segundo os atores-chave da região.

Melhoria na segurança hídrica para Vitória e todo o Espírito Santo

Em Vitória, capital do Espírito Santo, a restauração de áreas prioritárias nas bacias do Jucu e Santa Maria da Vitória pode garantir melhor segurança hídrica para a capital e todo o estado. Na capital, combinar infraestrutura natural com a convencional gera 50% mais benefícios econômicos do que investir apenas nas infraestruturas tradicionais.
Ao longo de 20 anos, a restauração de 2,5 mil hectares de florestas geraria uma economia de R$ 93 milhões. Isso evitaria o equivalente a deixar de jogar 40 caminhões-caçamba de sedimentos nos rios todos os anos e economizaria energia o suficiente para iluminar 130 mil casas por um mês.
O estudo Infraestrutura Natural para Água na Região Metropolitana da Grande Vitória visa demonstrar como a restauração florestal de áreas degradadas nas Bacias do Jucu e do Santa Maria da Vitória poderia melhorar o desempenho operacional do armazenamento e tratamento de água da região da Grande Vitória.

O poder da conservação e restauração das florestas em Campinas

Nos municípios a montante da captação de água que abastece a região metropolitana de Campinas já existem 78 mil hectares de vegetação nativa em áreas prioritárias para a água. Conservar essas áreas economizaria, por ano, R$ 6,6 milhões com produtos químicos.

Na região também existem 14 mil hectares degradados. Nesse caso, a restauração dessas áreas resultaria em uma economia de R$ 1,7 milhão por ano. 
Juntas, a conservação e a restauração das florestas geram uma economia anual de R$ 8,4 milhões por ano.
O estudo Infraestrutura Natural para Água em Campinas (SP) e Região oferece um panorama da relação custo-benefício e do potencial da infraestrutura natural no controle de sedimentos lançados aos corpos d’água que abastecem a região. O relatório contém uma avaliação da infraestrutura natural para controle de sedimentos e estratégias para a implementação da infraestrutura natural.

Benefícios no abastecimento de água e renda para agricultores em Belo Horizonte

Restaurar 900 hectares em áreas prioritárias de Belo Horizonte teria como resultados:
Prevenção de 200 toneladas por dia de sedimentos nos rios.
Redução de 26,5% no uso de produtos químicos para o tratamento de água.
Economia de R$ 2 milhões no sistema de abastecimento.
A restauração pode ainda gerar renda e garantir segurança alimentar na região metropolitana de BH, se for feita em áreas prioritárias e a partir de modelos integrados, como os Sistemas Agroflorestais (SAFs).

O estudo Infraestrutura Natural para Água na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais identifica as melhores formas de prover serviços ecossistêmicos relacionados à sedimentação evitada e seus impactos no abastecimento hídrico da Região Metropolitana de Belo Horizonte, além de apresentar proposições de como e onde a infraestrutura natural pode promover benefícios a populações de baixa renda.

O sucesso da infraestrutura natural não depende apenas de dados

Os dados gerados apoiaram uma série de ações nas regiões de estudo, como por exemplo na formulação de políticas públicas, no estabelecimento de critérios para implementação de ações de restauração e na mobilização e engajamento de pessoas no tema.

Isso nos mostra que dados são importantes para subsidiar ações e projetos relacionados à gestão hídrica, mas eles não são a única coisa necessária para solucionar os desafios climáticos e hídricos. Nesse caso, os benefícios e a economia que podem ser alcançados com a infraestrutura natural, além de presentes nas dimensões ambientais e econômicas, precisam ser expandidos à dimensão social. O sucesso da infraestrutura natural também depende de uma governança efetiva, da comunicação entre os atores sociais e o seu envolvimento ativo. Dessa maneira, a economia gerada a partir da infraestrutura natural pode ter como resultado, além dos custos evitados, o respeito a cultura e a promoção de inclusão, emprego e renda.

Fonte: WRI Brasil


Infraestrutura Natural para a Água

A restauração de paisagens e florestas pode melhorar a qualidade da água nos reservatórios e gerar renda no campo, resultando em benefícios ambientais e econômicos para toda a sociedade.


Apesar de ser um país com grande disponibilidade de água, o Brasil não está imune aos riscos de estresse hídrico. Nas grandes cidades e regiões metropolitanas, uma população crescente pode precisar acessar recursos hídricos de áreas próximas, e as mudanças climáticas já estão tornando o clima mais instável, aumentando as chances de secas que possam comprometer o abastecimento.

Para fazer frente a esses desafios e garantir água de qualidade para a população, governos, empresas de saneamento e financiadores precisarão investir recursos públicos e privados no sistema de abastecimento. Esses investimentos muitas vezes são feitos em infraestrutura convencional, como reservatórios, represas e estações de tratamento. Essas obras são necessárias, mas sozinhas não darão conta do desafio de atender uma demanda crescente pela água.

Novos estudos e experiências em várias partes do mundo mostram que um outro tipo de investimento pode, em conjunto com as obras convencionais, trazer grandes benefícios econômicos, sociais e ambientais. Esses novos investimentos estão sendo chamados de “infraestrutura natural” ou “infraestrutura verde”. São soluções baseadas na natureza como a conservação da vegetação nativa em áreas de mananciais, a restauração florestal e a gestão sustentável e agroecológica das paisagens.

O WRI Brasil dedica-se a desenvolver estudos relacionados a infraestrutura natural para água e a soluções baseadas na natureza, além de articular com tomadores de decisão das esferas municipais e estaduais no Brasil para fomentar e dar escala a conservação e restauração de florestas no entorno de reservatórios e mananciais. O objetivo é gerar soluções inteligentes e eficientes para setores público e privado, reunindo conhecimento já existente em economia, restauração florestal e mapeamento geoespacial para identificar riscos, oportunidades de implantação de infraestrutura natural e estratégias para proteção dos recursos hídricos.
 
Estimando os benefícios econômicos da infraestrutura natural para água

Para que soluções baseadas na natureza como a conservação da vegetação nativa e a restauração florestal sejam de fato colocadas em prática pelas empresas de abastecimento e poder público, em um primeiro momento foram evidenciados os benefícios econômicos da infraestrutura natural.

Ao restaurar florestas que estão em paisagens degradadas e em áreas prioritárias para o abastecimento de água, como no entorno de reservatórios, as árvores evitam que grande parte dos sedimentos chegue aos cursos d’água, funcionando como barreiras naturais. Isso gera economia, na medida em que reduz a quantidade necessária de produtos químicos para o tratamento da água e diminui os custos de energia das estações de tratamento relativos à dragagem, além de prolongar a vida útil dos reservatórios.


Em uma série de três estudos feitas por WRI Brasil, TNC, UICN, Natural Capital Project, Instituto Bioatlântica, Fundação Boticário e FEMSA, foi possível calcular esses resultados para três importantes bacias hidrográficas do Brasil: a Cantareira, em São Paulo; a bacia do Guandu, no Rio de Janeiro; a bacia do Jucu, no Espírito Santo.

Os resultados já estão disponíveis para download: 

Incluindo as dimensões social, de biodiversidade e de conservação para a infraestrutura natural

Nos últimos anos, a abordagem de infraestrutura natural para a água foi integrada ao programa Cities4Forests, que atua para conservar, restaurar e gerenciar de forma sustentável a natureza em prol do bem-estar humano, partindo das cidades como catalisadoras de grandes mudanças políticas em prol das florestas, facilitadoras do fluxo de financiamento para projetos baseados na natureza e defensoras globais da conservação e restauração de florestas tropicais.

Dois novos estudos foram produzidos, desta vez para as regiões metropolitanas de Campinas e de Belo Horizonte. Os resultados trazem recomendações conectadas com políticas públicas de cada território e buscam fundamentar, estimular e facilitar a criação e o fortalecimento de programas relacionados principalmente à restauração e à gestão hídrica. 

Infraestrutura Natural para Água na Região Metropolitana de Campinas (SP)
Infraestrutura Natural para Água na Região Metropolitana de Belo Horizonte (MG)

Na região metropolitana de Campinas, o estudo foi elaborado dentro do projeto INTERACT-Bio, do ICLEI América do Sul. Além da análise de benefícios econômicos, o relatório ampliou a abordagem para entender o papel da conservação das áreas de vegetação nativa já existentes e a conexão com políticas públicas municipais em vigor, como no Plano de Ação para Implementação da Área de Conectividade na Região Metropolitana de Campinas, do Programa Reconecta RMC.

Já as análises feitas para a Região Metropolitana de Belo Horizonte avançaram ao incluir uma perspectiva social. O relatório, produzido por WRI Brasil em parceria com a Copasa MG e o programa Pró-Mananciais, utiliza a ferramenta ROAM para entender como a restauração florestal a partir de modelos econômicos, como os sistemas agroflorestais, pode gerar renda para produtores rurais residentes nas áreas prioritárias, que muitas vezes são também áreas de maior vulnerabilidade social. O trabalho apresenta recomendações para a destinação de recursos com vistas à promoção de benefícios sociais para além da gestão hídrica e da restauração.

Uma rede internacional em prol de uma melhor gestão da água

O WRI Brasil trabalha a questão de infraestrutura natural em parceria com o World Resources Institute (WRI) em outros países, como Estados Unidos e Índia, e convoca e empodera pessoas em todos os níveis da tomada de decisão. A organização oferece um banco de dados com evidências e melhores práticas para colocar a infraestrutura natural em ação. A educação coletiva também é conduzida por meio de extensas redes de gestores, conservacionistas, negócios e governos que estão reunidos por um objetivo em comum: melhorar o acesso à água e fomentar o desenvolvimento econômico pela conservação e a restauração de paisagens.

Fonte: WRI Brasil  



quinta-feira, 10 de julho de 2025

O que é melhor proteger: grandes florestas ou vários fragmentos? Novo estudo reacende polêmica



Fernanda Wenzel

Desde a década de 1970, o debate sobre quais áreas abrigam maior biodiversidade divide a comunidade científica; para alguns pesquisadores, um conjunto de vários pequenos fragmentos é tão importante quanto um grande bloco de floresta.

Um artigo publicado em março na revista Nature reacendeu o debate e reforçou a tese de que grandes blocos verdes são mais importantes para a conservação das espécies.

O que abriga maior biodiversidade de espécies? Uma grande área contínua de floresta ou uma área verde do mesmo tamanho, porém dividida em vários pequenos fragmentos? A polêmica divide a comunidade científica há mais de cinquenta anos e ganhou um novo capítulo com um artigo liderado por um brasileiro e publicado em março na revista Nature.

“É um debate que começou na década de 1970, quando os pesquisadores passaram a discutir qual seria a melhor maneira de desenhar as unidades de conservação de forma a proteger a biodiversidade”, explica Thiago Gonçalves-Souza, biólogo e pesquisador da Universidade de Michigan, que assina o estudo ao lado de outros 26 pesquisadores de oito países.

Para alguns cientistas, uma região com muitos pequenos fragmentos de mata poderia ser tão ou mais rica em espécies do que um grande bloco florestal. Isso porque cada um destes fragmentos teria características únicas, favorecendo o desenvolvimento de espécies diferentes em cada um deles. Somando todos estes fragmentos, o saldo final seria mais positivo do que aquele encontrado em uma grande área verde contínua.

“Quem defende essa tese diz que, mesmo que a gente perca espécies em uma escala local, o aumento da heterogeneidade entre diferentes fragmentos iria aumentar a biodiversidade naquela região como um todo”, explica Gonçalves-Souza.

Na Mata Atlântica, um dos biomas mais desmatados do Brasil, é quase impossível encontrar grandes blocos de floresta. Foto de Zig Koch/Fundação SOS Mata Atlântica

Seu estudo, no entanto, reforça a hipótese de que a conservação de grandes blocos de floresta é, sim, mais eficiente para proteger a biodiversidade. Gonçalves-Souza e os colegas analisaram dados colhidos por outros 37 estudos em paisagens espalhadas por seis continentes. Para cada uma delas, compararam a diversidade de espécies encontrada em grandes blocos de floresta com aquela de pequenos fragmentos florestais da mesma região.

A conclusão é que a diversidade de espécies em áreas fragmentadas é 12% menor do que em grandes extensões florestais, mesmo quando olhamos para o conjunto de fragmentos. “Mostramos que a perda na escala local é tão grande que o aumento da diferença de biodiversidade entre os fragmentos não compensa essa perda”, disse Gonçalves-Souza à Mongabay. “A biodiversidade da paisagem como um todo também é reduzida, e isso é super relevante”.

O artigo foi contestado pela canadense Lenore Fahrig, uma das principais defensoras da ideia de que pequenos fragmentos florestais são tão importantes quanto os grandes blocos de floresta. Em email enviado à Mongabay, Fahrig questiona a metodologia utilizada pelo brasileiro, e afirma que “seus resultados poderiam ser usados erroneamente para sugerir que remanescentes pequenos têm baixo valor para a conservação da biodiversidade, levando à falta de proteção de remanescentes menores”.

Quem defende a tese do “quanto maior, melhor” argumenta que certos animais, como os grandes felinos, precisam de vastos territórios para caçar e se reproduzir. À medida que a área verde vai encolhendo, sua população diminui e surgem espécies mais versáteis, como roedrores e gambás.

“Uma onça-pintada precisa de milhares de hectares para ter uma família, e é preciso ter algumas famílias de onças para não ficar cruzando parente com parente”, afirma Luís Fernando Guedes Pinto, diretor executivo da SOS Mata Atlântica, ONG que trabalha para proteger um dos biomas mais desmatados do Brasil. “Para isso, são necessários milhares de hectares, o que é muito raro de encontrar na Mata Atlântica”.

Grandes felinos como as onças-pintadas precisam de grandes áreas para caçarem e se reproduzirem. Foto: Steve Winter/Panthera

Explorada de maneira predatória desde a chegada dos portugueses, no século 16, a Mata Atlântica é um dos biomas mais biodiversos do mundo e já cobriu 130 milhões de hectares em 17 estados brasileiros. Hoje, restam apenas 24% da cobertura original, e 97% desta mata está em pequenos fragmentos isolados, de no máximo 50 hectares.

“A floresta foi sendo derrubada e fragmentada. Restaram áreas maiores apenas em regiões de baixa aptidão agrícola, como a Serra do Mar, na parte que vai do Paraná até São Paulo e Rio de Janeiro”, explica Pinto.

Estas ilhas de floresta também estão mais suscetíveis à degradação, já que os trechos de vegetação que fazem limite com estradas, cidades ou plantações está mais sujeita a invasões, ao fogo ea mudanças de temperatura e umidade. “Essa região de borda não serve de habitat para as espécies mais exigentes ecologicamente”, diz Pinto.

Entender quais áreas concentram maior biodiversidade é importante para que gestores públicos saibam onde concentrar os parcos recursos de conservação. Mas para Lucas Ferrante, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), não é possível reduzir esta discussão ao tamanho da área a ser conservada.

“Acho minimalista defender uma única área grande ou várias pequenas como um modelo ideal para conservação,” ele disse à Mongabay. “O que que a gente pretende ao criar uma unidade de conservação? É frear o desmatamento da Amazônia? Neste caso, colocar unidades de conservação grandes em pontos estratégicos é a melhor opção”, exemplifica Ferrante. “Se é proteger espécies ameaçadas de extinção, eu tenho que olhar onde essas espécies estão na paisagem. Eu tenho muitas espécies endêmicas no Brasil que estão somente em pequenos fragmentos florestais”, explica.

“Não é que os fragmentos não importam”, concorda Gonçalves-Souza, que defende o investimentos em projetos de restauração em biomas como a Mata Atlântica — em 2024, pela primeira vez, a área regenerada no bioma foi maior do que a área desmatada. “Se a gente não recuperar o que ainda existe, a perda da biodiversidade vai ser muito mais drástica”.

Fonte: Mongabay





quarta-feira, 9 de julho de 2025

PROJETO INOVADOR DE NITERÓI IMPLANTA USINA SOLAR EM ENCOSTA


Matéria de capa do O Globo Niterói, de 06/07/2025.


Foto Leonardo Simplicio. ION, Prefeitura de Niterói.

Em 2018, a Prefeitura de Niterói foi a grande vencedora do Prêmio Lidera Rio, promovido pelo SEBRAE, em parceria com o Instituto República, CLP e Cidadis. Vencemos três das quatro categorias do Prêmio e ainda o prêmio principal. Ao todo, concorreram 28 projetos de oito municípios do estado do Rio de Janeiro.

O projeto vencedor da categoria "Sustentabilidade e Resiliência" e que venceu também a categoria principal como "Melhor Projeto", foi: 

"IMPLANTAÇÃO DE PARQUE SOLAR EM ÁREA DE ENCOSTA"


Os outros projetos de Niterói vencedores no Lidera Rio foram: 

  • Categoria "Derivações da Matriz Econômica": Projeto "Criação do maior polo cultural do país", apresentado por Danielle Nigromonte (Secretaria Municipal de Cultura) e Marília Ortiz (SEPLAG).
  • Categoria "Urbanismo para o Desenvolvimento": Projeto "Intervenção urbanística na Avenida Visconde do Rio Branco", apresentado por Rogério Gama (SMU) e Gláucia Macedo (ex-coordenadora do Núcleo de Gestão Estratégica)



Cerimônia de premiação do Prêmio Lidera Rio, em 2018, com grande reconhecimento à capacidade de planejamento e formulação de projetos inovadores da equipe da Prefeitura de Niterói.

Este último projeto dentre os premiados ("Intervenção Urbanística na Avenida Visconde do Rio Branco") também foi implantado pela nossa administração e deu uma nova conformação à orla do Centro de Niterói, proporcionando mais qualidade paisagística da Praça Arariboia e dando mais funcionalidade para o transporte tanto na parte norte (desde o Mercado São Pedro até a Praça Arariboia), bem como no Terminal Sul, melhorando o acesso aos ônibus. Também foram requalificadas ou implantadas novas ciclovias desde o Mercado São Pedro até o Forte Gragoatá. O projeto foi desenvolvido pela SMU, com concepção urbanística baseada no conceito de "Ruas Completas".

GERAÇÃO DE ENERGIA SOLAR EM ENCOSTAS

A possibilidade de gerar energia nas encostas sempre foi uma ideia que carrego desde os tempos de ambientalista em Niterói. 

Sempre acreditamos que todo território precisa ter uma finalidade definida e uma gestão atribuída. A falta de destino e gestão gerou ao longo dos anos a ocupação desordenada e a exposição de famílias à situação de risco geotécnico (p. ex. deslizamento de encostas). Por isso, em 2014, desenvolvemos o projeto Niterói Mais Verde, que elevou as áreas protegidas da cidade a mais de 56% do seu território. Sempre acreditamos que a geração de energia solar pudesse der uma boa alternativa de uso público desses espaços.

Já havíamos tentado desenvolver anteriormente a ideia no Morro da Penha, na Ponta D'Areia, e em outras localidades, mas lá encontramos dificuldades técnicas, principalmente relacionado à elevada declividade do terreno. Identificamos o Morro da Boa Vista como a melhor opção. 

PROJETO ENCOSTA VERDE

Após a premiação, continuamos avançando com o projeto, fazendo o seu detalhamento e orçamento, até que foi licitado em 2024. Ao passar para a fase de implantação, o projeto do Parque Solar passou a ser chamado de Encosta Verde. 

O desenvolvimento do projeto conceitual ficou por conta da engenheira florestal Valéria Braga, subsecretária do Escritório de Gestão de Projetos - EGP (vinculado na época à Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Modernização da Gestão - SEPLAG) e pelo coronel bombeiro Walace Medeiros, secretário municipal de Defesa Civil. 

O parque solar foi idealizado, além da geração de energia, também como uma ferramenta de ordenamento da encosta, evitando a ocupação das áreas de maior risco, aos mesmo tempo que evita a continuidade da degradação ambiental da área, protegendo as áreas que estão recebendo os investimentos de reflorestamento por parte da Prefeitura de Niterói. Resultados são esperados na produção de energia para atender demandas do município, na redução de queimadas e na prevenção de ocupação desordenada

Concepção do projeto Encosta Verde.

O projeto está sendo implantado pela empresa Multicom, após licitação realizada na nossa gestão. São 450 painéis solares, compostos por 2.700 módulos fotovoltaicos, que serão distribuídos ao longo da encosta para a geração de energia limpa. A iniciativa inclui ainda um sistema de captação de água da chuva, reflorestamento e ações de prevenção a deslizamentos e queimadas. A expectativa é que o parque solar gere aproximadamente 150 mil kWh de energia, que será utilizada no abastecimento de equipamentos públicos, resultando em economia nos gastos com eletricidade e reforçando o compromisso da cidade com a transição energética. O investimento é de R$ 7,7 milhões.

Informação de contratação da empresa executora:
(08/05/24) DO: Homologação da licitação publicada
(09/05/24) DO: Contrato com a empresa vencedora Multicon Construções e Serviços Ltda assinado.
(10/05/24) DO: Ordem de Início das obras publicada.

Na sua concepção, o Encosta Verde não se resume apenas à implantação dos equipamento de geração de energia solar, mas um modelo de gerenciamento da encosta. Foram previstas originalmente uma séria de medidas de integração com a comunidade, como a criação de um Conselho Gestor integrando lideranças das cinco comunidades, a Defesa Civil, a ION (antiga EMUSA), secretarias afins como Participação Social (SEMPAS), Meio Ambiente (SMARHS) e outros órgãos. O trabalho de reflorestamento no entorno das áreas do Encosta Verde terá como prioridade a utilização de espécies frutíferas para atrair o interesse da comunidade e oferecer alimentação saudável.

Segundo a Prefeitura de Niterói, cerca de 20% da força de trabalho na obra é composta por moradores da própria comunidade. Victor Barcellos, presidente da Associação de Moradores do Morro do Boa Vista, celebra a iniciativa.

“Nós estamos entusiasmados e acreditamos que o projeto vai trazer diversas melhorias para a comunidade. Os moradores estão ansiosos. A gente fica muito feliz em saber que a comunidade vai ser uma referência e terá um olhar diferenciado”, afirma Barcellos.

O sistema de drenagem prevê a implantação de cisternas para estocagem de água que poderá ser aproveitada também para a rega da área de reflorestamento e combate a incêndios.

Importante destacar que por ocasião da realização da consulta pública para o Plano Plurianual - PPA de 2022-2025, o Encosta Verde foi o terceiro projeto mais votado pela população, mostrando o grande interesse público na sua realização.

CARACTERÍSTICAS DA ÁREA

O Morro da Boa Vista tem importância histórica, pois nele se localizava a Aldeia São Lourenço, ponto de origem da cidade de Niterói. Considerando a relevância da área, sua importância social e a sua vulnerabilidade ambiental, a Prefeitura priorizou o reflorestamento das suas encostas e criou o Parque Natural Municipal Águas Escondidas.

A implantação do projeto numa área de encosta urbana é uma inovação e um grande desafio, que exigiu um planejamento mais complexo e maiores cuidados de engenharia. A escolha do Morro da Boa Vista ocorreu devido a sua posição geográfica, e definimos o projeto na vertente norte, que recebe maior insolação, permitindo mais eficiência de captação da energia solar. A declividade da encosta é por volta de 30%, que é considerado aceitável para a implantação da estrutura solar.

A área possui um elevado nível de erosão superficial e a região é uma das que mais gera demandas para vistorias geotécnicas da Defesa Civil. A vegetação na área de implantação é apenas herbácea mas é limítrofe à mais importante área de reflorestamento de encostas na cidade


A área de implantação do Encosta Verde no Morro da Boa Vista interage com diferentes comunidades do entorno, como São Lourenço, Boa Vista, Juca Branco, Nossa Senhora de Lourdes e Serrão.  

Mapa de Risco Geotécnico do Morro da Boa Vista

As características de vulnerabilidade social da área também são um desafio, mas este motivo justifica ainda mais o investimento. Há uma recorrente ocorrência de queimadas na encosta, que tem causado prejuízos aos trabalhos de reflorestamento. A maior presença do poder público no local, além das contrapartidas oferecidas pela Prefeitura à comunidade, permitirão uma relação de valorização e apoio às iniciativas do Encosta Verde.

Na foto de 2014, a devastação causada pelo fogo no Morro da Boa Vista, afetando áreas em início de reflorestamento.

Há mais de 12 anos, Niterói tem dado exemplos de políticas inovadoras de sustentabilidade e resiliência e o Encosta Verde será uma das iniciativas mais inovadoras e emblemáticas.

Axel Grael
Prefeito de Niterói (2021-2024)
Secretário de Planejamento, Orçamento e Modernização da Gestão (2017-2020)
Vice-Prefeito de Niterói (2013-2016)


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LEIA TAMBÉM:

Loureiro, Thais Belloti; Barbosa, Walace Medeiros; Braga, Valéria Augusta; de Oliveira, Eric Almeida & dos Santos, Marina Magalhães Reis. GESTÃO DE ENCOSTAS SOB PERSPECTIVAS INOVADORAS: O PROJETO ENCOSTA VERDE E SUA CONCEPÇÃO INICIAL. III Encontro Nacional de Desastres: eventos extremos e sociedade sob a perspectiva das mudanças climáticas. Associação Brasileira de Recursos Hídricos - ABRHidro. Niterói, março de 2023.


PRÊMIO LIDERA RIO: Niterói conquista prêmio principal e 3 das quatro categorias 



domingo, 6 de julho de 2025

Negacionistas minimizam impacto da crise climática em tragédia no Rio Grande do Sul

SÉRIE "TEXTOS SELECIONADOS SOBRE NEGACIONISMO CLIMÁTICO


Postagens investem em teorias conspiratórias para justificar desastre ambiental no Sul; ONU, projeto de pesquisa Haarp e até cantora Madonna são citados como ‘culpados’ pelas enchentes

Por Gabriel Belic e Giovana Frioli
09/05/2024

Perfis negacionistas nas redes sociais têm compartilhado diferentes teorias conspiratórias para rejeitar os efeitos das mudanças climáticas na tragédia ambiental no Rio Grande do Sul. Postagens falsas creditam a catástrofe à Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), ao programa Haarp e até mesmo a um suposto ritual da cantora Madonna.

As postagens investem na teoria de que as mudanças climáticas e o aquecimento global são uma “farsa”. Mas, ao contrário do que defendem os negacionistas, especialistas no assunto e estudos realizados pela empresa de meteorologia MetSul confirmam a relação de alguns dos eventos extremos recentes com o aquecimento do planeta.

Como explicou o Estadão, o Rio Grande do Sul é localizado em uma região de encontro entre sistemas polares e tropicais, ou seja, entre ar quente e frio. Isso faz com que o Estado tenha particularidades que facilitam a ocorrência de fenômenos climáticos. No entanto, especialistas indicam que o El Niño e as mudanças climáticas, provocadas pelo aquecimento global, potencializam o problema.

Dados históricos conseguem demonstrar o agravamento dos efeitos das mudanças climáticas em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Cálculos do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) mostram como o número de dias com extremos de precipitação (acima de 50 milímetros) aumentaram na cidade a cada década desde 1961. Veja o gráfico feito pelo Estadão com os extremos de precipitação em Porto Alegre.

Em entrevista ao Estadão, o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Rodrigo Paiva ressaltou que existe um consenso na comunidade científica internacional sobre a interferência do aquecimento do planeta no aceleramento do ciclo hidrológico. É por esse motivo que existem chuvas mais intensas em alguns lugares e secas maiores em outros.

O professor Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, afirmou ao Estadão que é possível creditar a tragédia no Rio Grande do Sul ao agravamento da crise climática. O especialista entende que os fenômenos climáticos extremos ficarão cada vez mais intensos, frequentes e imprevisíveis.

Um exemplo de mensagem negacionista foi recebida pelo Estadão Verifica no WhatsApp. De acordo com a postagem, a inundação de Porto Alegre em 1941 foi maior que a enchente deste mês de maio, o que desbancaria narrativas sobre mudanças climáticas. Porém, essa afirmação não é correta. Na noite de sexta, 3, a cheia do Guaíba, na capital gaúcha, alcançou um nível histórico de 5,08 metros, ultrapassando o recorde anterior de 4,76 metros registrado na década de 1940.

Ainda na sexta-feira, 3, o Guaíba já havia ultrapassado a cota de inundação em Porto Alegre. Foto: MIGUEL NORONHA


Teorias conspiratórias disseminadas não têm relação com tragédia no RS, nem provam que o aquecimento global é uma ‘farsa’

Uma das teorias conspiratórias mais disseminadas no X para justificar o desastre ambiental no Sul do País é sobre o projeto Haarp, sigla para “High-frequency Active Auroral Research Program” (Programa de Pesquisa Ativa de Alta Frequência de Auroras, em português). O sistema foi criado nos anos 1990 pela Universidade de Alaska Fairbanks, com objetivo de estudar ondas na ionosfera, uma camada da atmosfera. Como mostrou o Projeto Comprova, os cientistas que participam do projeto negam que o sistema tenha qualquer interferência no clima.

Outras postagens investem em conspirações sobre a Agenda 2030 da ONU e a Nova Ordem Mundial. As teorias conspiratórias sobre esses assuntos geralmente são compartilhadas juntamente a menções ao Fórum Econômico Mundial e nomes como Bill Gates e George Soros. Essas peças desinformativas insistem que existe um movimento para implantar um “governo global e totalitário”, que estaria controlando o clima.

Como o Estadão Verifica já explicou, a Agenda 2030 é um conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) lançados em 2015 pelas Organização das Nações Unidas (ONU), após décadas de debate. Os objetivos definem os temas humanitários que devem servir como prioridade nas políticas públicas internacionais até 2030. Entre eles, estão o combate à pobreza e desigualdade socioeconômica, a promoção de uma sociedade mais saudável e a gestão adequada dos recursos naturais.

Uma postagem no X com mais de 372,9 mil visualizações na rede social apontou ainda que o show da cantora Madonna, no sábado, 4, “foi parte de um ritual ocultista realizado em meio à calamidade climática planejada que assola o Rio Grande do Sul”. O fio que conspira sobre a apresentação da cantora não esclarece, no entanto, que o evento no Brasil havia sido anunciado em março. A apresentação faz parte de uma turnê que começou em outubro de 2023, em Londres, e contou com 81 shows. O espetáculo em Copacabana seguiu o mesmo roteiro que as outras perfomances de Madonna na turnê. Ou seja: nenhuma relação com o Rio Grande do Sul.

Fonte: Estadão


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TEXTOS SELECIONADOS "NEGACIONISMO CLIMÁTICO"

Negacionistas minimizam impacto da crise climática em tragédia no Rio Grande do SulMudanças climáticas e aquecimento global ainda são desconhecidas por 34% dos brasileiros - DataFolhaBrasil e ONU lançam Iniciativa Global contra Desinformação Climática - ONU



Pesquisa analisa como pensam os brasileiros sobre as mudanças climáticas

SÉRIE "TEXTOS SELECIONADOS SOBRE NEGACIONISMO CLIMÁTICO"



Os resultados revelam que embora a maioria absoluta da sociedade brasileira acredite que a mudança do clima existe e é causada por humanos, a severidade de seus efeitos não é consenso


Um estudo da Escola de Relações Internacionais (FGV RI) aponta como pensam os brasileiros sobre as mudanças climáticas. Entre os resultados, nota-se que na sociedade brasileira há forte consenso em relação às crenças segundo as quais a mudança do clima existe e é causada por humanos; no entanto, a população encontra-se polarizada a respeito da crença na severidade da crise climática: quase metade dos entrevistados expressa ceticismo em relação a isso (44%). Esses indivíduos duvidam que a mudança do clima tenha efeito negativo intenso sobre a sua vida.

Os autores do estudo, Matias Spektor, professor titular da FGV RI; Guilherme Fasolin, doutorando da Universidade de Vanderbilt (Estados Unidos) e pesquisador associado à FGV RI; e Juliana Camargo, professora agregada da FGV RI, apresentam abaixo as principais conclusões sobre o Brasil: O fator que mais determina a adesão da população às três crenças é o consenso científico. A percepção de que os cientistas possuem um diagnóstico comum sobre a mudança do clima é o que mais influencia a população a acreditar.
  • O principal fator por trás da descrença na mudança do clima (ceticismo climático) é o grau de individualismo dos cidadãos. Quanto mais individualista, mais descrente é o brasileiro. Individualismo é um perfil psicológico marcado pela busca da autonomia pessoal e pela desconfiança em relação a soluções coletivas para os problemas sociais.
  • A pesquisa ainda mostra que o ceticismo climático ocorre tanto à direita quanto à esquerda do espectro político. Isso é diferente do que ocorre nos Estados Unidos e na Europa, onde a descrença está concentrada em cidadãos de direita.
  • O ceticismo a respeito da severidade da crise climática é mais disseminado no Brasil do que em países vizinhos, como Argentina, Chile, Colômbia, Equador, México e Peru.
 
Implicações do Estudo para o Brasil

A pesquisa tem implicações para autoridades públicas, agentes do setor privado e para ativistas da sociedade civil organizada porque as três crenças definem em grande medida o comportamento político dos cidadãos.

Embora a maioria absoluta da sociedade brasileira acredite que a mudança do clima existe e é causada por humanos, a severidade de seus efeitos não é consenso. Isso, por sua vez, abre amplo espaço na opinião pública brasileira para o negacionismo.

O negacionismo climático no Brasil possui campo fértil não apenas à direita do espectro político, mas também à esquerda. Um resultado positivo do estudo, no entanto, é que tanto cidadãos de direita quanto de esquerda podem apoiar políticas pró-clima, o que não ocorre em outros países do mundo. Os alvos mais fáceis do negacionismo climático são os cidadãos mais individualistas, ou seja, aqueles que duvidam de soluções coletivas para problemas sociais, suspeitam que o estado não resolverá seus problemas e tendem a contar apenas consigo mesmos. Isso é preocupante numa sociedade com níveis baixos de confiança interpessoal e nas instituições públicas.

Para comunicar mensagens pró-clima aos cidadãos mais céticos é preciso ressaltar o papel do mercado e da iniciativa privada na busca de soluções para a crise climática. Para que essa mensagem seja crível, também é preciso dar voz a fontes de informação pró-clima que possuam autoridade moral junto a essa fatia da população, tais como empresários, ruralistas e operadores do mercado financeiro.

Metodologia

A pesquisa foi realizada por coleta de dados através da metodologia de survey em sete países responsáveis por 80% das emissões de CO2 da América Latina (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México e Peru). A amostra incluiu 5.038 respondentes de amostras nacionalmente diversas.

Para ler a pesquisa na integra, clique aqui.

Fonte: Portal FGV


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NEGACIONISMO CLIMÁTICO NO BRASIL

SÉRIE "TEXTOS SELECIONADOS SOBRE NEGACIONISMO CLIMÁTICO"



Imagem: Renato Trivella

No ano de 2012, o programa Jô Soares, exibido pela Rede Globo de televisão, produziu uma entrevista com o professor Ricardo Felício da Universidade de São Paulo (USP), que teve como tema o aquecimento global, ou melhor, nas palavras do entrevistado: “a farsa do aquecimento global”. Naquela entrevista, o então anônimo professor argumentou que “o aquecimento global é apenas uma hipótese” e que o “efeito estufa é a maior falácia da história”. Em seguida, declarou que “a floresta amazônica nada influencia no clima da Terra, e que se fosse completamente desmatada, a floresta se reconstituiria em 20 anos”. Aquele era o momento em que o negacionismo climático ganhava sua primeira grande aparição na mídia no Brasil, em um contexto político muito oportuno: às vésperas do final do prazo para o veto presidencial do novo Código Florestal, que concedeu o perdão para os produtores rurais que desmataram áreas de preservação e reservas legais até o ano 2008.

Três anos antes da entrevista de Felício a Jô Soares, o professor Luiz Carlos Baldicero Molion, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) comparecera a uma audiência pública da Câmara dos Deputados Federais, a convite de membros da bancada ruralista, para discutir a relação entre o desmatamento e as mudanças climáticas. Com o objetivo de sustentar a proposta ruralista de reformulação do Código Florestal, Molion argumentara que havia um entendimento errado da relação entre o problema do desmatamento e as emissões de CO2 (gás carbônico) como causa das mudanças climáticas. Segundo ele: “o CO2 não controla o clima global; podem colocar quanto CO2 quiserem na atmosfera, que será benéfico”. Além disso, segundo Molion, há um entendimento errado da relação entre o problema do desmatamento e as emissões de CO2 como causa das mudanças climáticas. “Devemos evitar o desmatamento por conta da manutenção da biodiversidade, pois o CO2 não é o vilão, nem o poluente que mostram pela televisão”, argumentara o professor. Tais argumentos lançavam suspeitas aos fatos científicos sustentados por 99% da comunidade científica mundial representada pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC), plataforma da Organização das Nações Unidas (ONU), que fornece aos formuladores de políticas avaliações científicas regulares sobre as mudanças climáticas.

​Munidos dos argumentos negacionistas, deputados a favor da causa ruralista sustentaram que existia algum tipo de conspiração por trás do regime internacional de mudanças climáticas e do ativismo ambientalista relacionado. Para o deputado federal Aldo Rebelo (relator da comissão especial que discutia a alteração do Código Florestal no ano de 2009, na época, do PCdoB), o argumento negacionista deixava claro que havia em torno da questão climática levantada nas discussões sobre o Código Florestal brasileiro uma “ideologia distinta das questões ecológicas e científicas”, mais especificamente: “a ideologia imperialista norte-americana”, representada pelas ONGs e organismos internacionais, que visava “conter o avanço do setor agropecuário no Brasil”. Para Rebelo, seria “uma perda de tempo o encontro em Copenhague” (se referindo à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas realizada naquele ano em Copenhague), pois esse encontro se referia às “pressões exercidas pelos países desenvolvidos sobre as responsabilidades ambientais dos países emergentes”. Comungando dessa visão conspiratória, o deputado federal Moreira Mendes (um dos líderes ruralistas mais ativos no processo do Código Florestal na Câmara) afirmou que existia uma forma de “colonialismo ambiental” em curso, que tornava a questão ambiental uma “nova maneira de subjugar os países em desenvolvimento”. A utilidade do negacionismo climático para os ruralistas naquele debate era evidente. Apresentava-se uma outra “opinião” sobre o assunto, supostamente advinda da ciência, que introduzia suspeitas, dando a entender que havia “um outro lado da história” que estava sendo omitido e, com isso, tentava-se afastar a questão das mudanças climáticas do debate sobre o Código Florestal.

Apesar da visibilidade obtida na TV e da utilidade do negacionismo climático como suporte para a posição ruralista nos embates parlamentares, aquele ainda não seria o grande momento do negacionismo climático no Brasil. Durante os governos Lula (2003-2010) as questões ambientais se tornaram parte importante da agenda de política externa, e a ciência e a política climática tiveram seu maior desenvolvimento. Lula sancionou a lei nacional de mudanças climáticas e, na Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas em Copenhague (COP 15), adotou uma posição ousada ao estabelecer metas voluntárias de redução de carbono, comprometendo o Brasil a reduzir as emissões de gases do efeito estufa de 36,1% a 38,9% até 2020. Na área da ciência climática, foram estruturadas importantes redes de pesquisas científicas nacionais como a Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais (Rede Clima) e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT-MC), que se tornaram redes abrangentes de pesquisas interdisciplinares em mudanças climáticas embasadas na cooperação de 90 grupos de pesquisa de 108 instituições e universidades brasileiras e 18 estrangeiras, que produziram estudos científicos que deram suporte à política climática nacional e à posição geopolítica do governo nas arenas internacionais. Assim, a estruturação político-científica das mudanças climáticas produziu um regime no qual o negacionismo climático se tornaria residual na ciência e na política ambiental brasileira naquele período.

​Entretanto, uma década depois, os ventos mudariam de direção. No ano de 2019, logo após a posse do presidente Jair Bolsonaro, Ricardo Felício e Luiz Molion reapareceram na cena pública. Junto a 20 professores de universidades brasileiras, eles publicaram em um site chamado “notícias agrícolas”, e endereçaram ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, uma carta aberta em que reivindicaram uma “agenda climática baseada em evidências e nos interesses reais da sociedade”. Para os autores, as questões climáticas continuavam sendo "pautadas, predominantemente, por equivocadas e restritas motivações ideológicas, políticas, econômicas e acadêmicas” e que “não há evidências científicas da influência humana no clima global”. Deixando de lado a discussão climatológica, os autores adotaram na carta um tom predominantemente político, argumentando que a proposta de “economia de baixo carbono” é “uma pseudo-solução para um problema inexistente”.

​A carta dos negacionistas parece ter chegado ao endereço certo. Ricardo Salles, um dos Fundadores do Movimento Endireita Brasil (MEB) e ex-secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (cargo no qual tornou-se alvo de ação movida pelo Ministério Público de São Paulo sob a acusação de alterar ilegalmente o plano de manejo da várzea do rio Tietê, com a intenção de beneficiar interesses privados), foi escolhido por Bolsonaro para ocupar a pasta do Meio Ambiente com a finalidade de “agilizar” os processos de licenciamento ambiental e tratar das questões ambientais “sem viés ideológico”. Em relação ao tema das mudanças climáticas, Salles adotou como primeiras ações administrativas fechar a Secretaria de Mudanças Climáticas e Florestas e, em decisão conjunta com o Itamaraty, desistir de sediar no Brasil a COP25 em 2019. Questionado por repórteres a respeito de sua posição, Salles declarou que as mudanças climáticas antropogênicas permanecem “um assunto acadêmico controverso” e que há “muito alarmismo sobre o assunto”.

​Após a publicação da carta negacionista, Molion e Felício foram convidados a comparecer à audiência realizada pela comissão de Relações Exteriores e de Meio Ambiente do Senado em maio de 2019. A comissão teve como objetivo discutir a importância do tema das mudanças climáticas para a agenda política nacional e internacional, indicando que, após décadas de aprovação de políticas, leis e acordos internacionais sobre mudanças climáticas, poder-se-ia voltar atrás nos compromissos firmados pelo Estado. Além dos negacionistas, a comissão convidou para uma sessão paralela os cientistas membros do IPCC: Paulo Artaxo, Carlos Nobre, Mercedes Bustamante e o astrofísico Luiz Gylvan Meira Filho. Em uma longa sessão de exposição de estudos, eles corroboraram a validade das informações científicas sobre as mudanças climáticas e alertaram a respeito dos riscos do aquecimento atmosférico para a sociedade brasileira. Na ocasião, o meteorologista Carlos Nobre, surpreso por ter que defender a validade científica das mudanças climáticas após cinco relatórios do IPCC e do amplo consenso alcançado pela comunidade científica internacional a respeito do tema, declarou que: “nós estamos vivendo um momento que nós cientistas não previmos – nem mesmo os cientistas sociais – que no século XXI estaríamos vendo um movimento mundial anti-ciência, anti-intelectualismo”.

​A preocupação apresentada por Carlos Nobre com o fenômeno atual de desvalorização da ciência diz respeito a uma condição que tem sido chamada de “pós-verdade”. Trata-se de situações nas quais os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais. A negação da ciência e dos fatos objetivos não é fenômeno novo. Contudo, na era digital, as conclusões baseadas em evidências parecem ser cada vez mais ameaçadas por crenças baseadas em emoções e experiências pessoais compartilhadas, o que configura uma nova situação. Nesse contexto, redes anticientíficas como, por exemplo, as de antivacina e terraplanismo, estão em ascensão na internet, formando grupos numerosos, organizados para defender teorias que questionam fatos há muito tempo consolidados (para não dizer evidentes) como o fato de que as vacinas combatem doenças e de que a Terra é redonda. Da mesma forma, o negacionismo climático tem se disseminado pela internet. Entrevistas com Ricardo Felício realizadas em 2019 somam milhões de visualizações no YouTube, o que indica um estágio avançado de compartilhamento dos argumentos negacionistas. O negacionismo se propagou, principalmente, por meio de apoiadores do governo Bolsonaro, dentre eles, o próprio Ricardo Felício, que foi candidato a deputado federal pelo PSL em 2018.

​É notório que, com a ascensão de Bolsonaro à presidência e na eclosão de tudo aquilo que esse fenômeno representa em termos políticos e ideológicos, o negacionismo climático foi acolhido em uma cosmovisão que lhe conferiu plausibilidade, e acabou por torná-lo parte do discurso e da política oficial do governo sobre temas do meio ambiente. Dentre os ideólogos do governo, Olavo de Carvalho teve grande influência sobre a formação do pensamento que norteia as ações de quadros importantes da atual gestão. Destaca-se que os ministros Ernesto Araújo, Relações Exteriores, e o ex-ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, foram indicados ao presidente por Carvalho. O atual ministro da Educação Eduardo Weintraub e Felipe Martins, um dos conselheiros mais próximos do presidente, declaram-se publicamente “olavistas”; assim como os filhos de Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro. Uma das teses de Olavo de Carvalho é a de que as universidades brasileiras têm sido dominadas por décadas pelo “pensamento da esquerda”, também a grande mídia, que propaga o que ele chama de “marxismo cultural”, a saber, um projeto da “esquerda globalista” dedicado ao empreendimento de destruir a cultura ocidental capitalista e cristã. A “conspiração globalista da esquerda” visa, segundo Carvalho, submeter os povos a um único governo mundial através da ONU e demais órgãos internacionais.

​Para Olavo de Carvalho e seus discípulos, o aquecimento global é um “truque para implementar um governo global”. Para tanto, a “fraude científica se tornou o meio, uma tática da esquerda para produzir o alarmismo”. Portanto, nesse imaginário conspiratório, o negacionismo climático se associa à luta contra o “comunismo internacional” e seu projeto de “dominação ambiental contra a civilização cristã”. Tais ideias não são produto somente da imaginação de Olavo de Carvalho, pois contam com um número de livros e publicações que têm sido divulgados entre bolsonaristas como, por exemplo, o livro de Pascal Bernardin, “O Império Ecológico”, e o livro de Dom Bertrand Oliveira e Bragança, “Psicose Ambientalista”, este último, citado por Bolsonaro na reunião do G20 em 2019. Compartilhando dessa visão, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, denominou “climatismo” essa conspiração global, argumentando que:

O ‘climatismo’ (sic) juntou alguns dados que sugeriam uma correlação do aumento de temperaturas com o aumento da concentração de CO2 na atmosfera, ignorou dados que sugeriam o contrário, e criou um dogma “científico” que ninguém mais pode contestar sob pena de ser excomungado da boa sociedade. Esse dogma vem servindo para justificar o aumento do poder regulador dos Estados sobre a economia e o poder das instituições internacionais sobre os Estados nacionais e suas populações, bem como para sufocar o crescimento econômico nos países capitalistas democráticos e favorecer o crescimento da China.

Não há nenhuma originalidade por parte do ministro e demais “olavistas” na associação entre “aquecimento global e conspiração marxista”. Em sua genealogia do negacionismo climático norte-americano, os cientistas e escritores Naomi Oreskes e Erik Conway indicaram que a ação de think tanks[1] associados à ala conservadora do Partido Republicano, junto a alguns grupos da mídia, construíram já na década de 1990 uma contra narrativa às mudanças climáticas que defendia valores considerados pelos conservadores como sendo legitimamente americanos: a defesa do livre mercado, o combate ao comunismo e o direito de opinião em assuntos públicos. Em Merchants of Doubt, estes pesquisadores argumentam que a estratégia dos negacionistas junto a mídia visava confundir “equilíbrio” com “objetividade” ao exigir que “todas as partes interessadas numa determinada questão devem ter igual voz na cobertura dos fatos”. Para os autores, esse “balanço” das informações dos “dois lados” é falacioso porque não reflete o modo como a ciência trabalha, pois “uma vez que uma questão científica é fechada, só existe um lado”. Eles concluem que a conivência da mídia com o negacionismo climático tornou fácil ao governo americano decidir por “não fazer nada” em relação ao aquecimento global.

​De acordo com Myanna Lahsen, antropóloga e pesquisadora no Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a difusão das teorias da conspiração no debate sobre as mudanças climáticas induzidas pelo homem tem um longo histórico. Particularmente, nos Estados Unidos, há uma certa facilidade de reivindicações não confirmadas e sugestões de conspiração serem disseminadas entre o público que não simpatiza com a ideia do aquecimento global e suas implicações políticas por conta da ação dos think tanks conservadores junto a mídia. Adam Hodges, linguista e professor da Universidade do Colorado, ressalta que as decisões do governo Trump de negar compromissos com a política climática são sustentadas por redes negacionistas cujo discurso é paranoico e de cunho conspiratório e de grande aceitação pelo público conservador. Para o autor, o impacto final que o estilo paranoico tem sobre a política americana “gera uma forma de pós-verdade cínica que pode efetivamente interromper o debate sobre questões legítimas, movendo o discurso para o reino da fantasia ideologicamente distorcida".

​Notoriamente, os negacionistas climáticos brasileiros do governo Bolsonaro importaram suas narrativas de trabalhos e conferências realizadas por think tanks conservadores norte-americanos. Em julho de 2019, o Itamaraty enviou um diplomata para participar de uma conferência com negacionistas do clima realizada pelo think tank “The Heartland Institute” em Washington. Após a reunião, circulou no Itamaraty um telegrama que reportava os principais pontos abordados na reunião. Em um trecho do telegrama, o diplomata resume o que acredita ser o real motivo dos alertas feitos no mundo sobre as mudanças climáticas: "[...] eles estão colocando em risco nosso modo de vida. O debate não é sobre mudança do clima, nem sobre dióxido de carbono. Não é sobre clima, nem ciência. É sobre socialismo contra capitalismo [...]". Em setembro de 2019, o ministro Ricardo Salles, reuniu-se nos Estados Unidos com grupo negacionista do clima do Competitive Enterprise Institute (CEI), meses antes da COP25.

​O fato de que think tanks conservadores norte-americanos fazem parte das redes de informação do governo pode ter tido influência direta na postura adotada pelo Brasil na COP25. Na reunião realizada em dezembro de 2019 na Espanha, a comissão brasileira compareceu em pequeno número, acanhada e sem proposta clara. Diferente das outras reuniões, o Brasil posicionou-se junto a países como os Estados Unidos, Austrália e Arábia Saudita na tentativa de obstruir as negociações. Com essa decisão, a comissão brasileira negou-se a dar continuidade a sua posição de liderança dos países emergentes e de exigir metas ousadas de redução de emissões CO2 dos países desenvolvidos. Esse realinhamento geopolítico demonstra que o governo brasileiro optou por adotar a trajetória dos maiores emissores de carbono, seguindo os passos de Donald Trump. Após a reunião, em uma atitude de escárnio ao que havia sido discutido na conferência, o ministro Ricardo Salles postou em suas redes sociais uma foto de um farto prato de carne bovina com a legenda: “para compensar nossas negociações na COP, um almoço veggie!”.

​Verifica-se, portanto, que o negacionismo climático se tornou uma política do governo Bolsonaro. Para que isso acontecesse, as autoridades do atual governo ignoraram a ciência e atacaram membros da comunidade científica, como é o caso dos ataques dirigidos ao ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Ricardo Galvão. Após o INPE divulgar os dados de aumento das queimadas na Amazônia, Bolsonaro chamou Galvão de “mentiroso” e alegou que o diretor deveria estar “a serviço de alguma ONG”. Esse episódio, foi seguido de um debate entre Ricardo Salles e Ricardo Galvão na rede de televisão Globo News em agosto de 2019. Na ocasião, Galvão afirmou que o governo não consultou em nenhum momento a ciência brasileira em assuntos que dizem respeito à Amazônia. Ricardo Salles retrucou dizendo: “o problema é quando a ideologia está disfarçada dentro da ciência”, endossando a acusação feita por Bolsonaro. Em entrevista posterior, Ricardo Galvão relatou que após o debate com Salles em frente às câmeras, conversou com o ministro nos bastidores, e se desapontou ainda mais ao ouvir do ministro que “ele não acreditava na ciência brasileira porque a ciência brasileira estava toda aparelhada pela esquerda contra os americanos”. As infundadas acusações do presidente e do ministro repercutiram internacionalmente, expondo o quanto o governo Bolsonaro ignora a legitimidade da ciência brasileira no mundo. Em dezembro, a prestigiada revista Nature abriu sua lista dos dez cientistas que fizeram a diferença em 2019 com a foto de Ricardo Galvão, o chamando de “herói” que desafiou o governo em defesa da Amazônia.

​Diante do que foi apresentado até aqui, podemos refletir a respeito das razões para se negar as mudanças climáticas. Em um primeiro momento, compreendemos que o negacionismo climático serve como um artifício retórico para aqueles que têm como objetivo a desregulamentação das leis ambientais e o não compromisso com acordos internacionais, como foi ilustrado pelo caso dos ruralistas na tramitação do novo Código Florestal brasileiro e no fraco comprometimento do Brasil na COP25. Nesse sentido, o negacionismo climático é frequentemente alistado por grupos que defendem iniciativas liberais, que consideram a legislação ambiental e os acordos internacionais um entrave ao livre comércio, à livre iniciativa, ao pleno uso da propriedade privada. A primeira razão para se negar as mudanças climáticas, portanto, é dar continuidade às atividades econômicas que impactam o meio ambiente sem qualquer regulação ou compromisso público.

​Posteriormente, percebemos que o negacionismo climático também faz parte de uma visão de mundo de certos grupos que realmente acreditam que o aquecimento global é uma fraude. A percepção de que as instituições públicas de ensino estão corrompidas pela ideologia da esquerda e que as mudanças climáticas fazem parte dessa conspiração revela que, para além das razões dos grupos econômicos liberais, o negacionismo climático faz parte de um regime discursivo inserido em uma determinada rede de práticas compartilhadas por grupos que se sentem de alguma maneira enganados e desiludidos. Eles buscam no negacionismo “um outro lado da história” que lhes foi omitido, que a ciência oficial os negou, mas que pode ser encontrado nas palavras de outsiders e organizações que denunciam a corrupção das instituições científicas e políticas. A partir disso, o negacionismo climático passa a transcender os aspectos políticos e científicos e a se referir a significados sociais enraizados em realidades subjetivamente vivenciadas como abrangentes e completas. É ilustrativa a declaração de Ernesto Araújo: “fui a Roma em maio e havia uma onda de frio”, experiência que, para o ministro, torna-se prova de que o aquecimento global não existe. A razão, portanto, para negar as mudanças climáticas nesse caso não diz respeito ao conteúdo científico, mas a uma visão e experiência de mundo incompatíveis com aquelas de quem acredita nas mudanças climáticas.

​Por fim, cabe ainda destacar uma outra razão apontada pela filósofa Déborah Danowski. Segundo ela, há vários tipos de negacionistas e negacionismos:

[...] há os por assim dizer independentes e há os que, por baixo do pano, são pagos por grandes corporações, pelas companhias de carvão, petróleo e gás para produzir artigos de jornal baseados em falsas pesquisas científicas. Mas há ainda um outro tipo de gente que, por motivos diferentes, ou “não aceita” a realidade das mudanças climáticas, ou aceita, mas “não tanto assim”. São pessoas até bem esclarecidas, que dizem frases como: “ah, nisso eu não posso acreditar”, “isso também não, aí já é demais”, “isso aí já é catastrofismo” ... “Catastrofismo não”. Uma razão por que se nega o inegável é que isso que é inegável é também intolerável. Se fôssemos encarar diretamente o que temos pela frente, isso exigiria de nós, aqui e agora, muito mais do que estamos realmente dispostos a fazer. (grifo nosso).

Nesse sentido, muitos daqueles que acreditam nas mudanças climáticas, podem também negar, em alguma medida, a urgência que essa verdade implica para continuar vivendo suas vidas da mesma maneira. Então, delegam a responsabilidade de decidir e encontrar soluções às autoridades e, frequentemente, se frustram com os resultados. Essa é uma forma mais tênue de negacionismo, mas com efeitos igualmente paralisadores. Demonstra-se preocupação com a questão, mas sem se engajar seriamente na causa, sem querer transformar radicalmente o modo de vida, sem levar a sério a urgente necessidade de transformação política. Talvez seja essa a forma de negacionismo que mais tem contribuído para que a questão das mudanças climáticas se encontre tão vilipendiada no Brasil atual.

NOTAS

[1] Think Tanks são grupos de especialistas associados para debater temas específicos e influenciar a formulação de políticas públicas ou processos de tomada de decisão pública. Geralmente, são financiados por corporações e lobbys que têm interesses privados nos resultados de determinada questão pública.

PARA SABER MAIS

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​MIGUEL, J.; MAHONY, M.; MONTEIRO, M. S. A. (2019). Infrastructural geopolitics- of climate knowledge: the Brazilian Earth System Model and the North-South knowledge divide. Sociologias (UFRGS), v. 21, p. 44-75.

​MOLION, L. (2019). “Carta aberta ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo de Aquino Salles”. Disponível em https://www.noticiasagricolas.com.br/noticias/meio-ambiente/231554-cientistas-liderados-por-lcmolion-confrontam-ambientalistas-que-defendem-o-aquecimento-climatico.html#.XL7x8uhKjIV Acesso: 06/01/2020.

​NOBRE, C. (2019). Audiência pública das comissões de relações exteriores e meio ambiente. TV Senado. 30 de maio de 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5vsfx7OmmIg&t=2317s Acesso: 06/01/2020.

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​TOFFELSON, J. (2019). Nature’s 10, Ten people who mattered in science in 2019. Nature current issues. Disponível em: https://www.nature.com/immersive/d41586-019-03749-0/index.html Acesso em: 06/01/2019.

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O Autor:

Jean Miguel é sociólogo, mestre e doutor em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente, realiza pós-doutorado na Escola de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Foi pesquisador visitante da School of Environmental Sciences da University of East Anglia no Reino Unido. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia, tendo interesse, principalmente, nos seguintes temas: ciência, tecnologia e desenvolvimento sustentável; transições sociotécnicas para a sustentabilidade; governança da ciência e da tecnologia em questões socioambientais; mudanças climáticas e sociedade. Atualmente, participa do projeto internacional CLIMAX (Climate Services Through Knowledge Co-production: A Euro-South American Initiative for Strengthening Societal Adaptation Response to Extreme Events - Belmont Forum e FAPESP: n. 2015/50687-8) como co-coordenador do Grupo de Trabalho 3 - Processos sociais que explicam a apropriação da informação climática por tomadores de decisão.

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Fonte: Coletiva. O texto faz parte do interessante Dossiê Emergência Climática, publicado em 2020. Também vale acessar o Dossiê Negacionismos & Autoritarismos, publicado em 2023, principalmente o elucidativo texto: "Negacionistas: uma definição em camadas", de José Szwako.

Segundo informações do site

"A Coletiva é uma revista eletrônica de divulgação científica, publicada pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) desde 2010. Sediada em Recife, a revista disponibiliza dossiês temáticos quadrimestrais e outras seções periódicas, com uma perspectiva de diálogo entre os saberes acadêmicos e outras formas de conhecimento, prezando pela diversidade sociocultural e liberdade de expressão. É voltada para um público amplo, curioso e crítico.

O projeto da Coletiva é uma atividade de extensão do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional (ProfSocio/Fundaj), ligado à Diretoria de Formação Profissional e Inovação (Difor) da Fundaj. Conta com o apoio do multiHlab - Laboratório Multiusuários em Humanidades, com bolsistas financiados pela Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe)".

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TEXTOS SELECIONADOS "NEGACIONISMO CLIMÁTICO"

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