No final de junho, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) assinou uma Portaria (Portaria MMA n°229/2017) que institui um Comitê e Grupo Técnico (GT) para formular e implementar o Programa Conectividade de Paisagens. A meta é construir um programa de Estado que pense e ordene a conectividade territorial, tanto do ponto de vista da biodiversidade e da conservação, quanto do humano e do uso do solo. Por isso, apesar de ter sido criada dentro do âmbito do MMA, a Portaria convida outros ministérios, como o da Agricultura, para se juntarem à mesa de discussões.
Nas vésperas da primeira reunião oficial para dar início à construção do programa, o diretor do Departamento de Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente, Warwick Manfrinato, um dos articuladores do programa, conversou com ((o))eco. Manfrinato explicou que “o objetivo do programa é reunir projetos que hoje são operados de maneira independente e desconectada e trazê-los para dentro de uma estrutura de conexão institucional”. Ainda de acordo com ele, existem áreas prioritárias, como a costa oeste do Brasil, que liga o Pantanal com a Amazônia. A consolidação de corredores no sentido norte – sul para facilitar a migração das espécies diante das mudanças climáticas também é uma das pautas em destaque no programa.
Leia a entrevista:
((o))eco: Como surgiu a iniciativa do Programa Conectividade de Paisagens?
Warwick Manfrinato: Os corredores ecológicos estão sendo discutido no mundo todo, principalmente nos países signatários das convenções do Clima e da Biodiversidade. No Brasil não é diferente. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) trata há algum tempo desse tema de corredores do ponto de vista ambiental e da conservação. O programa não surgiu, portanto, do nada. Há dois anos, uma iniciativa da Universidade Federal de São Paulo (USP) propôs à várias organizações, inclusive ao governo federal da época, que se iniciasse uma discussão sobre corredores ecológicos. A proposta foi liderada pelo então professor José Pedro de Oliveira Costa, atual Secretário de Biodiversidade. Quando ele assumiu a pasta, ele propôs diretamente ao ministro, José Sarney Filho, transformar essa iniciativa em um programa com maior amplitude e espectro de ação. Percebemos que os projetos em andamento poderiam ser perenizados através do estabelecimento de um programa. Essa transição de um projeto de governo para um programa de Estado é uma das principais direções norteadoras da discussão que vem ocorrendo nesses últimos meses dentro do MMA, juntamente com outros ministérios, como o da Agricultura, da Defesa e das Relações Exteriores.
Nós tentamos fazer com que os objetivos do programa sejam amplos o suficiente para que ele tenha uma sobrevida para além do próprio MMA. O Programa Conectividade de Paisagens, como vem sendo desenvolvido e proposto, tenta conciliar lados aparentemente conflitantes para ampliar seu alcance. O próprio secretário de Áreas Protegidas foi falar com os secretários do Ministério da Agricultura, para que esse olhar sobre o problema de degradação ocorra de uma forma em que os potenciais da agricultura e da conservação possam ser maximizados, cada um no seu campo, porém de maneira dialogada.
Qual a estratégia para tirar o programa do papel?
A Portaria n° 299/2017 que dá início ao programa foi publicada semana passada, no dia 23 de junho. Antes disso, o Programa de Conectividade de Paisagens já havia sido anunciado pelo ministro Sarney Filho no México, na Convenção da Biodiversidade, em dezembro do ano passado. Ao longo desse semestre, nós trabalhamos na articulação do programa, que será coordenado pela Secretaria Executiva do MMA, já que não integra somente assuntos de interesse da conservação e conectividade no sentido físico, mas também envolve questões de articulação institucional. O objetivo do programa é reunir projetos que hoje são operados de maneira independente e desconectada e trazê-los para dentro de uma estrutura de conexão institucional. O programa será um lugar de discussão e avaliação dessas iniciativas frente a outras secretarias que também possuem voz naquela temática específica. Por exemplo, a questão de Reserva Legal e de Área de Preservação Permanente (APP) hoje é tratada principalmente dentro de um departamento do MMA e no Serviço Florestal Brasileiro através do CAR (Cadastro Ambiental Rural). Haverá um fórum de discussão onde a política pública do Cadastro vai dialogar com o Departamento de Áreas Protegidas quando o tema envolver questões referentes ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Essa relação proposta pelo programa atuará em duas instâncias operacionais. Uma será o Comitê Diretivo, composto por secretários, pelos presidentes das autarquias e pelos diretores de diferentes divisões do MMA. E o Grupo Técnico, composto por servidores de cada uma dessas divisões e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Defesa. Esse grupo irá estabelecer as diretrizes do programa e discutir as questões operacionais e controversas do dia-a-dia.
Segundo o texto da Portaria nº 229/2017, “O Programa a ser implementado tem como objetivo central promover a integração de políticas públicas que propiciem a conectividade entre as áreas naturais protegidas e os seus interstícios, visando reduzir os efeitos da mudança do clima sobre a biodiversidade, com ênfase nas condições de adaptabilidade das espécies, bem como assegurar a sustentabilidade dos processos produtivos relacionados, contemplando questões afetas ao clima, água, florestas, aspectos socioambientais, econômicos e culturais.”
A portaria foi publicada, agora o próximo passo é reunir um grupo de trabalho para construir esse programa. Como funcionará esse processo?
A ideia do Programa Conectividade de Paisagens é que ele possua múltiplos autores. Ele não foi desenhado por nós e repassado às outras instâncias. O que nós fizemos foi um esboço de uma proposta que foi discutida com todos os secretários preliminarmente. Foram diversas reuniões onde os diferentes grupos trouxeram documentos, textos e opiniões. E em maio nós realizamos uma reunião final onde houve o alinhamento dessas contribuições. A partir disso, nós desenhamos a proposta da Portaria, que prevê a construção do programa de forma conjunta com seus diferentes atores, inclusive de fora do MMA. Não é uma Portaria interministerial. É uma Portaria do Ministério do Meio Ambiente, mas que convida os outros ministérios para contribuir. Inclusive, ela prevê a participação do setor privado na mesa de discussões.
A partir da data de publicação, nós temos um prazo de 120 dias para consolidar a estrutura do programa e encaminhar a proposta. A primeira reunião do Grupo Técnico que irá construir o programa está marcada para dia 4 de julho. Com a aprovação do programa, ele entrará em operação, e será implementado e executado dentro de uma ordem multi-mandatária. Nosso planejamento é de longo prazo, para os próximos 10, 15 e 20 anos, para que ele possa ser continuado por quem quer que venha futuramente a assumir a pasta de Meio Ambiente.
Quais são os pontos focais e prioritários do programa?
Existem características físicas e geográficas que precisam ser consideradas, como rios, montanhas e biomas. Existem também as características humanas, que não podem ser ignoradas, porque são elas que levam à degradação ou à conservação. Como nós ordenamos tudo isso é a grande questão do programa. Sob a ótica de prioridades, nós obviamente precisamos olhar para o que ainda existe de área preservada; e para os grandes campos de ocupação transformados pelo uso da agricultura e pecuária; e pensar como nós unimos regiões demasiadamente desconectadas. Nós temos, por exemplo, a Calha Norte, a Calha do São Francisco e a Calha do Rio Guaporé, na fronteira com a Bolívia. Toda a região que liga o Pantanal à Amazônia, na nossa fronteira oeste, é uma região prioritária – onde já foram reconhecidos, inclusive, vários Sítios Ramsar. No centro do país existem rios como o Araguaia, o Xingu e o São Francisco, que naturalmente criam ligações entre os biomas no sentido norte-sul. Porque além da Calha Norte, que seria um corredor leste-oeste, também tem sido uma preocupação fazer essa conexão norte-sul. Porque isso vai de encontro com outra prioridade que é a questão climática e a adaptação às mudanças que virão. Nós precisamos proteger os corredores norte-sul porque nas próximas décadas haverá a necessidade de migração das espécies para os polos. Esse é um assunto muito discutido na Convenção do Clima que precisa ser ordenado na Convenção de Diversidade Biológica também. Quando falamos de corredores, além de priorizar regiões específicas que estão desconectadas do ponto de vista ambiental mais imediato, para garantir o fluxo gênico entre elas, é preciso também pensar no longo prazo, na necessidade de criar esses corredores para facilitar a migração das espécies. Os governos devem tomar essa iniciativa.
Além disso, no Programa Conectividade de Paisagens há diferentes níveis de prioridade. Existe a prioridade biológica de regiões específicas e zonas de encontro entre biomas, e também os locais de interesse humano e cultural. Existem corredores culturais, como as estradas, que também precisam ser observados à luz da conectividade. O programa é uma iniciativa multidimensional e multidisciplinar, que precisa ser construída com muitas cabeças e visões distintas. O programa busca integrar não só áreas, mas ações e instituições.
De que forma o Cadastro Ambiental Rural (CAR) pode ajudar a incluir propriedades privadas no projeto de corredores?
Essa presença do CAR no planejamento do Programa de Conectividade é uma necessidade, que inclusive já está sendo articulada com o diretor-geral do Serviço Florestal Brasileiro. Não há nenhuma possibilidade de corredores e do programa ocorrer sem a participação do setor privado, dos proprietários e das atividades agrícolas. Recentemente eu estive em uma indústria de açúcar e foi constatado lá que o próprio canavial estava cumprindo o papel de conectividade entre os diferentes fragmentos de floresta nativa daquela região. Existem alternativas para que a atividade agrícola seja menos impactante e mais permissiva à biodiversidade, e técnicas para aprimorar a malha de relações em regiões onde a necessidade de conectividade é mais ampla. O programa permitirá a criação de políticas públicas através de incentivos e projetos para que o proprietário possa produzir sem perder de vista a necessidade de proteger um bem que é da sociedade. O proprietário rural cumpre um papel social para além da função econômica de produção. Existem ferramentas que devem ser olhadas à luz da conectividade e o CAR será uma delas. O Cadastro irá fornecer instrumentos e informações para que possamos aumentar as alternativas de diálogo com o proprietário rural.
Até que ponto a implementação de trilhas de longo curso, como a Trilha Transcarioca no Rio de Janeiro, que conecta seis unidades de conservação, pode ser uma estratégia aliada na consolidação de grandes corredores ecológicos?
É muito importante evidenciar que não existem corredores se não houver uma ação de conectividade em nível local. Não existe um corredor, qualquer que seja ele, que funcione sem essa visão local. Nós podemos conceber um grande corredor na Calha Norte, mas se os prefeitos, as empresas e os proprietários locais não entenderem que aquilo é importante, eventualmente a degradação vai acontecer. Mesmo com um arcabouço legal robusto, ele não se implementa. Nesse sentido, a ação de trilhas de longo curso é muito importante porque desperta o envolvimento e o engajamento das comunidades que moram ao longo dessa trilha. As pessoas passam a ter, não somente o benefício econômico gerado pela presença da trilha, mas a noção de que aquilo serve a um bem maior. E aí sim, de baixo para cima, essa ação de corredor começa a fazer sentido. Áreas protegidas valorizadas por trilhas são essenciais e os trekkings de longo curso são um assunto em emergência, algo que está crescendo até por ação muito diligente do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio). Nós só iremos conseguir efetivar o programa de corredores se houver essa ação local junto com parques municipais, grupos de voluntariado e outros. Sem isso, faremos algo de gaveta, que não sairá do papel. Nós precisamos ter a visão continental, mas não podemos achar que só isso irá resolver. Esse trânsito em nível local é o que faz o projeto se concretizar.
Já existe alguma previsão de quais seriam as fontes de recurso para financiar o programa?
Sim. Em primeiro lugar, apesar de estarmos vivendo um momento orçamentário público muito difícil, o Brasil é privilegiado por seus parceiros internacionais. Existem inúmeras agências internacionais que atuam historicamente no Brasil, como o GEF (Global Environment Facility). Essas agências e interações nos fornecem recursos externos ao orçamento que permitem hoje a instalação e condução de projetos bem-sucedidos, como o ARPA (Programa de Áreas Protegidas da Amazônia), que é financiado por um grupo de doadores, que inclui a Alemanha e a Noruega, e ONGs como a WWF e a Moore Foundation, assim como empresas privadas.
Existem recursos já disponíveis que estão sendo operacionalizados para que a gente faça esse planejamento de médio e longo prazo. Por outro lado, existem novos recursos em vista. A Fase 6 do GEF acaba ano que vem, e eles já abriram a chamada para Fase 7. Nós estamos planejando para que a submissão ao GEF de uma nova demanda brasileira de recursos tenha uma estrutura muito ligada à questão da conectividade, tanto marinha quanto terrestre. Na região marinha nós queremos construir corredores como, por exemplo, Vitória – Trindade, no Espírito Santo. A Ilha de Trindade, que fica bem longe do continente, é uma cordilheira submersa e nós estamos olhando para ela como um corredor ecológico que será contemplado no Programa Conectividade de Paisagens. Esse planejamento irá estruturar nossas propostas para angariar recursos externos. Ao mesmo tempo, nós precisamos enxergar como é que os orçamentos federal, estaduais e municipais podem vir a partir do reconhecimento pelas jurisdições estaduais e municipais da importância do programa e do que ele representa.
Fonte original: ((o)) eco
Fonte da postagem: Portal Amazônia
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