terça-feira, 31 de julho de 2018

Em reportagem do Instituto Socioambiental sobre o povo Wai-Wai, a lembrança de uma das melhores experiências da minha vida



Aprendendo com os Wai-Wai

O texto abaixo, escrito pelo jornalista Roberto Almeida, foi publicado no site do Instituto Socioambiental, tradicional organização que defende culturas e comunidades indígenas no país. O jornalista acompanhou a rotina dos homens e mulheres da etnia Wai-Wai, que habitam a bacia dos rios Trombetas, Mapuera e Nhamundá.

Li com muita satisfação as ricas informações do autor sobre o povo e o lugar onde eu tive uma das mais marcantes experiências da vida.

Há cerca de 30 anos, entre 1986 e 1990, trabalhei numa empresa chamada Enge-Rio, já extinta, com forte atuação em projetos na Região Amazônica. Participei de estudos e projetos ambientais em várias partes da Amazônia e outras regiões do país. 

Num destes projetos, tive a grande sorte de participar de uma equipe de profissionais - com Mirian Regini Nuti (antropóloga), Cláudio Delorenci (arqueólogo), um topógrafo e um representante da FUNAI cujos nomes, lamentavelmente, não me recordo mais - que desenvolveu estudos socioambientais na Aldeia Mapuera, com predominância da etnia Wai-Wai (havia contingentes também de outras etnias na aldeia) e seu entorno, na Área Indígena Nhamundá-Mapuera, Pará.

Permaneci na aldeia, à beira do Rio Mapuera, um afluente do Rio Trombetas, por cerca de um mês, experiência que considero uma das mais marcantes de toda a minha carreira profissional. Convivi e aprendi muito com os Wai-Wai, esses brasileiros que na ocasião não falavam português, não conheciam uma cidade, mas sabiam tudo sobre a floresta: um sonho para qualquer engenheiro florestal como eu.

As fotos abaixo foram registradas naquela ocasião:


Axel Grael, Mirian Nuti e Cláudio Delorenci, na Aldeia Mapuera. Foto acervo Mirian Nuti.

Crianças indígenas da Aldeia Wai-Wai, Rio Mapuera (PA), preparadas para exercício de pontaria com arcos e flechas. A brincadeira consistia em acertar um disco cortado do tronco de uma bananeira. Foto do acervo Axel Grael/ENGE-RIO.

Umaná, casa comunitária da Aldeia, onde eventos culturais aconteciam. Foto acervo Axel Grael.

Vista para o alto no interior da Umaná. Neste local, bonecos de palha, representando animais eram amarrados. Durante um ritual, no início da temporada de caça, homens ad tribo dançavam e atiravam suas flechas para acertar os animais de palha. Foto acervo Axel Grael.

" Búúúú...!!! "
Meu pequeno e simpático amigo na tribo praticando a sua brincadeira predileta: me dar sustos. Escondeu-se por baixo do tronco e tentou me assustar no momento em que eu passava.  Foto acervo Axel Grael.

Durante o período que estive na aldeia Mapuera, onde desenvolvi mapeamentos florestais, estudos etnobotânicos e apoiei o trabalho de outros membros da equipe, pude acompanhar o cotidiano local e fiquei fascinado com técnica de navegação nas longas e elegantes canoas, a destreza das crianças e dos adolescentes indígenas no uso do arco e flechas, o idioma e o gestual característico. Me recordo do modelo de governança da aldeia e da forma altiva e firme com que conduziam as reuniões conosco. Também me lembro bem das divertidas brincadeiras das crianças (sempre querendo me pregar sustos), a apurada capacidade auditiva (eram capazes de identificar que uma canoa se aproximava por ouvir vozes a uma distância de várias curvas do rio) e a habilidade com que caminhavam nas trilhas cruzavam igarapés. Também não posso me esquecer da beleza da arquitetura majestosa casa comunitária de cerimônias, a chamada Umaná. 

Aproveite o relato abaixo, o interessante registro fotográfico e assista ao vídeo da matéria do Instituto Socioambiental (ISA), embarque nas canoas do Wai-Wai e viaje pelos belos rios da região e se delicie com a culinária daquela comunidade amazônica. Aliás, a massa de castanha assada é inesquecível!

Obrigado aos Wai-Wai e parabéns ao trabalho e ao inestimável legado do ISA na proteção deste legado cultural dos povos tradicionais brasileiros.

Axel Grael
Engenheiro florestal



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Tîtko: a jornada épica da castanha do povo Wai Wai


Nataniel Wai Wai à frente da canoa de tatajuba carregada com mais de uma tonelada de castanhas. A descida pelo rio Anauá, na Terra Indígena Wai Wai, é o desafio no escoamento da produção. Foto: Rogério Assis/ISA


A castanha sempre foi a estrela da cultura alimentar dos Wai Wai. Com a estruturação da cadeia produtiva, ela vem se tornando o motor da transformação de vidas e reforço para a vigilância de um território acossado por invasores

Por Roberto Almeida, jornalista do ISA
Fotos: Rogério Assis/ISA


Braseiros vivos na maloca da aldeia Jatapuzinho, Terra Indígena Trombetas-Mapuera, Roraima. É manhã de um dia nublado de junho que começou muito antes do sol nascer. Entre folhas de bananeira, chapas e panelas brilhantes, mulheres Wai Wai trabalhavam orgulhosas para apresentar nove fartos preparos com tîtko (lê-se tãtko), a castanha do povo Wai Wai.

Mãos fortes e cuidadosas mostraram, em poucas horas, uma impressionante versatilidade. Bastou um giro rápido pela maloca, em estações montadas com esmero, para entender que ela é muito mais que uma semente que faz bem. A castanha do povo Wai Wai é, acima de tudo, a estrela de sua cultura e de sua soberania alimentar.

Das castanhas frescas nasce a base para caldos apimentados, beijus crocantes e saborosos, doces, mingaus com leite de castanha e banana-sapo, suco e óleo de castanha.

Tem mais: o Mawkîn (lê-se mô-kã), uma paçoca torradinha de farinha de castanha com tapioca; o Paapa (lê-se Fa-fá), uma mistura de goma de tapioca e farinha de castanha preparado na folha de bananeira; e o Kapayo R̂epu (lê-se Kafaio Refú), ou Perna de Tatu, uma massa de castanha e tapioca assada direto no fogo com o suporte do caule da palmeira buriti.

No comando, as parceiras Rebeca e Lenita Wai Wai mostraram como a goma e a massa de castanha — sem sal ou açúcar — devem ser moldadas com cuidado ao caule para se transformarem em um tubo denso que, após assado, ganha um leve adocicado natural.

“Aprendi o Kapayo R̂epu com minha mãe quando era pequena”, relembra Rebeca. “A gente assa devagar, sem pressa, até ficar queimadinho por fora para dar sabor.”

No Kapayo R̂epu, na paçoca e no beiju o toque da castanha é acentuado pelo calor. No Tîtko Xukmaran, o suco de castanha, ela é toda delicadeza e energia. “O suco de caixinha dos brancos não é saudável”, afirmou Ruciene Wai Wai. “O nosso é natural, tiramos aqui da mata, é bom. Sempre uso leite de castanha para fazer suco.”









Acima, à esquerda, Rebeca prepara o Kapayo R̂epu; ao centro, a farinha de castanha e tapioca torradas vão se transformar em paçoca, ou Mawkîn; abaixo, a preparação do Paapa, com goma de tapioca e massa de castanha na folha de bananeira. Fotos: Rogério Assis/ISA


A receita é simples, mas tirar da mata, como disse Ruciene, é trabalho duro que leva meses. A safra ocorre com mais força entre maio e agosto — curiosamente, por estar acima da linha do Equador, na entressafra das demais regiões das castanheiras do Brasil. Tempo em que famílias inteiras deixam suas aldeias para morar em acampamentos, alguns às margens dos cursos d’água nas bacias dos rios Anauá e Jatapuzinho, outros na terra firme dentro da floresta, nas terras indígenas Wai Wai e Trombetas-Mapuera.

Floresta adentro, elas juntam ouriços de castanha (o fruto que contém as sementes), abrem a golpes de facão, lavam no rio, separam as boas, ensacam cerca de 50 quilos por vez e transportam toneladas — em longas canoas — cachoeiras do rio Anauá abaixo, até chegar às aldeias para lavagem, secagem e comercialização. Uma jornada épica de trabalho com a cara, a força e a perseverança dos Wai Wai.

Assista à jornada de coleta de castanha do povo Wai Wai no vídeo abaixo.







‘A castanha é o banco dos Wai Wai’

O acampamento de Geraldo Pereira dos Santos, na beira do rio Anauá, chama-se Tetéu. Para viajar da aldeia até sua base, como os Wai Wai gostam de dizer, são ao menos cinco horas pelo rio. O tempo de percurso depende da dificuldade para transpor três cachoeiras — Conceição, Lilita e São Roque — que arranham as voadeiras arrastadas pelas pedras e acentuam os riscos de graves acidentes.



Wai Wai arrastam uma voadeira sobre a cachoeira Conceição, no rio Anauá. Foto: Rogério Assis/ISA


É apenas à noite, enquanto a família descansa para o trabalho do dia seguinte, todos ansiosos pela coleta da castanha, que Geraldo traz a fala mansa da experiência. Já foi tuxaua (cacique) da aldeia Anauá, é agente indígena de saúde, viajou por toda a Amazônia, conta histórias como ninguém.

“Comprei meu primeiro motor [de popa] com a castanha. Juntei mais de 150 sacas, carreguei a canoa e desci o rio a remo para vender”, disse, orgulhoso.

Para ele, o trabalho nos castanhais significa mobilidade, saúde e uma melhor qualidade de vida. Não por acaso, eles são os bens mais valiosos para os Wai Wai de Roraima. As áreas de coleta são divididas entre as famílias e parentes do Pará, Amazonas e Guiana viajam até as bases para ajudar. É renda e alimento para o ano inteiro.
Os Wai Wai são um povo indígena de língua karib composto por mais de 2,5 mil pessoas.

A safra prevista para 2018 é de 330 toneladas de castanha. O preço da lata de 10 quilos, em acordo com a empresa Wickbold de pães, é de cerca de R$ 44 –76% acima dos R$ 25 praticados por atravessadores na região. Um avanço importante em termos de planejamento, transparência e receita final nas mãos de cada família, parte da iniciativa Origens Brasil® (saiba mais)

Estímulo extra para que, no dia seguinte, duas canoas de tronco de tatajuba, cada uma resultado de trabalho de mais de mês, cada uma com cerca de 14 metros de comprimento, encostassem em frente à base Japim, do tuxaua Tarcizio Yakima Wai Wai, para serem carregadas rumo às cachoeiras do rio Anauá.

“Hoje, nós chamamos os castanhais de nossa poupança. Eles nos garantem dinheiro como a poupança para os brancos. Porque a castanha é a nossa fonte de renda”, disse Tarcizio, pronto para começar o trabalho.


Geraldo Pereira dos Santos vê a castanha como motor para melhora da qualidade de vida. Foto: Rogério Assis/ISA


Do castanhal à aldeia

Rio estreito e sinuoso, o Anauá é cheio de armadilhas. Somente quando o nível da água cresce com as fortes chuvas da época e atinge determinada altura, marcada pelos Wai Wai em pedrais, é que fica claro que é hora de descer com a produção. O rio sobe rápido, e rapidamente a sobriedade dos Wai Wai se transforma em excitação pela descida iminente.

A saída para os castanhais, pela manhã, é marcada por um banquete da caça abundante na terra indígena. Logo cedo, pacas, queixadas, catitus e macacos sustentam o trabalho duro dos castanheiros, assim como a farinha de mandioca e a pimenta. As caminhadas são longas, de mais de dois quilômetros, com subidas, baixadas e igarapés para cruzar.

Embaixo das castanheiras já limpas, uma montanha de ouriços começa a ser reunida pelos Wai Wai, que passam ao trabalho de facão para retirar as castanhas, limpá-las e ensacá-las. Com 50 kg de castanhas nas costas, o esforço da caminhada é monumental.







Trabalho pesado nos castanhais: os Wai Wai carregam sacos de 50kg por quilômetros dentro da floresta. Fotos: Rogério Assis/ISA


De volta à base, os sacos são reabertos para lavagem e nova separação das castanhas boas das chochas. Em seguida, elas são reensacadas para, enfim, começar o embarque nas canoas.

O procedimento é a consolidação das boas práticas no manejo da castanha, praticadas há uma década pelos Wai Wai. “Já aprendemos boas práticas para vender uma castanha de qualidade. Temos de ensinar nossos filhos a continuar a vender uma castanha limpa”, afirmou Fernandinho Oliveira Wai Wai, presidente da Associação dos Povos Indígenas Wai Wai (APIW).




Filhos e filhas, que recebem uma licença de 15 dias das escolas, de fato participam do trabalho e aprendem tudo sobre o manejo. “Quando eles voltam do trabalho da castanha para a escola, contam o quanto aprenderam com os pais sobre o território. Falam sobre as plantas que conheceram, os animais que viram e comeram, as tarefas no castanhal”, contou o professor indígena Renato Wai Wai, da aldeia Jatapuzinho. “Voltam orgulhosos.”

O dia escorre e, aos poucos, os sacos são empilhados um a um nas canoas de tatajuba. A carga completa tem nada menos que duas toneladas.

À frente da canoa principal, Nataniel Wai Wai é proeiro e guia as embarcações pelos caminhos traiçoeiros do rio Anauá. Nas corredeiras, o motor de 15hp dá lugar ao trabalho frenético com os remos para manter o prumo até a parada final: a cachoeira Conceição, barreira quase sempre intransponível para as canoas.






Embarque e trajeto das canoas de tatajuba pelo rio Anauá, na Terra Indígena Wai Wai. Fotos: Rogério Assis/ISA


Ali, as sacas são desembarcadas e estocadas para uma nova perna do escoamento até as aldeias, onde é feita outra lavagem, separação e secagem das castanhas. Último passo antes do ensacamento final e da comercialização.

Pressão no limite

Quando vistas do espaço, as Terras Indígenas Wai Wai e Trombetas-Mapuera, que abrigam as aldeias Wai Wai em Roraima, são divididas por uma zona de alta pressão de desmatamento que margeia a BR-210, rodovia com 410 quilômetros que liga a Missão Catrimani, oeste de Roraima, ao rio Jatapu, no sudeste do Estado. O trecho de estrada é símbolo do projeto militar de ocupação da calha norte e recebeu projetos de assentamento e colonização do governo federal no final da década de 1970.

A trinca das jovens cidades de São Luiz do Anauá, São João da Baliza e Caroebe formam um corredor na BR-210 e são a espinha dorsal do desenvolvimento predatório, com a abertura de estradas vicinais nos limites da Terra Indígena Wai Wai. O roubo de castanha e madeira são constantes. Resultado: os Wai Wai das aldeias Xaary e Anauá transferiram famílias para os limites da Terra Indígena para inibir os invasores.

Em trajeto pelas vicinais próximas à aldeia Xaary, por exemplo, a área desmatada tem dado lugar a fazendas, com a expansão de pastos e rebanhos. E as tensões têm aumentado significativamente nos últimos meses, dificultando até mesmo o escoamento da safra da castanha. “Se não cuidarmos, daqui a 10 anos não vai haver mais floresta”, prevê Valdeci Noro Wai Wai, liderança da aldeia Xaary.




Pasto e gado dominam a paisagem nas vicinais próximas à Terra Indígena Wai Wai. Abaixo, à esquerda, um carreiro de extração de madeira. À direita, uma castanheira solitária entre bananais. Fotos: Rogério Assis/ISA


Na passagem da reportagem do ISA pela região, um carro de som anunciava que a Primeira Festa do Trabalhador Rural em Caroebe teria sorteio de brindes, como motosserras. “Eles derrubam muito, acabam com castanhais, invadem nossas terras. Eu sou contra isso. E vocês, o que pensam?”, provoca o tuxaua Tarcizio Yakima Wai Wai.

O futuro é incerto. A continuidade de obras na BR-210 para além do rio Jatapu, em direção ao Amapá, está em pauta e pode acarretar uma nova frente de expansão agropecuária nos limites da Terra Indígena Trombetas-Mapuera.


Varanda na aldeia Jatapuzinho, Terra Indígena Trombetas-Mapuera, forrada de castanhas para secagem antes da comercialização. Foto: Rogério Assis/ISA


Por outro lado, há motivos para celebração. O reforço das boas práticas no manejo da castanha, e a parceria para comercialização justa e transparente com empresas, favorece o planejamento da safra e a vigilância dos territórios contra invasores. “Nós temos que continuar transmitindo este conhecimento [do manejo da castanha] para futuras gerações”, disse Vanilda Wai Wai da Costa, da aldeia Jatapuzinho. “E, assim, preservar a castanha e a floresta.”


Esta reportagem foi realizada com o apoio da União Europeia.


Fonte: Instituto Socioambiental



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