Especialista escava ossada de cerca de 2000 anos, encontrada em Cabo Frio, no local onde será implantado um Shopping. Foto Ivo Barreto, Iphan. Portal R7. |
O andamento dos projetos de infraestrutura do País está diante de um dilema. Os estudos arqueológicos, etapa inerente ao processo de licenciamento ambiental, se transformaram em um entrave para muitos desses empreendimentos, principalmente aqueles listados no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
O impasse não é resultado apenas do excesso de exigências atreladas ao rito do licenciamento, mas à falta de capacidade do próprio governo de realizar estudos que são obrigatórios para liberar as obras. "A demanda cresceu demais. Hoje operamos no limite, trabalhamos no sofrimento", relata Maria Clara Migliacio, diretora do Centro Nacional de Arqueologia do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A dificuldade do Iphan de lidar com o volume de trabalho que passou a receber fica mais clara quando observado o crescimento de permissões e autorizações ambientais emitidas nos últimos anos pela autarquia, que é vinculada ao Ministério da Cultura.
Em 1991, o instituto liberou cinco licenças arqueológicas, volume que avançou lentamente em uma década, chegando a 142 licenças em 2001. Nos últimos dez anos, houve um salto. Em 2007, ano do lançamento do primeiro PAC, foram emitidas 525 licenças pelo Iphan, volume que quase dobrou no ano passado, chegando a 969 documentos. "Pelo ritmo, vamos liberar mais de mil licenças neste ano", diz Maria Clara.
Seriam números para se comemorar, não fossem as restrições vividas no dia a dia pela equipe que está por trás da liberação desse trabalho. Ao todo, são 40 funcionários, um quadro que praticamente não mudou nos últimos anos. "Teríamos que ao menos triplicar nossa estrutura", diz a diretora. "É um milagre que o Iphan esteja conseguindo atender essa demanda com esse corpo tão reduzido."
O resultado, admite Maria Clara, é a aprovação de projetos baseada em análises precárias, com consequências incalculáveis ao patrimônio histórico do País. "Estamos falando de bens que não têm forma de reposição, um recurso que não é renovável. Portanto, uma vez mexido, acabou. Dada a nossa limitação, sabemos que estamos perdendo bens valiosos, não há dúvida sobre isso."
O Iphan é o órgão responsável pela identificação e pesquisa de sítios arqueológicos, resgate de materiais e, quando necessário, tombamento das áreas. Para que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) conceda o licenciamento ambiental de uma obra, é preciso que, antes, o Iphan dê autorização para que o projeto avance.
Incapaz de realizar seu trabalho de forma satisfatória, a saída que restou ao Iphan foi dar prioridade a projetos considerados fundamentais para o governo. Obras que já obtiveram a licença prévia (LP) do Ibama, e que aguardam a licença de instalação (LI), vão para a frente da fila.
No cotidiano do Iphan, não é raro encontrar situações de empresas que enviam relatórios com dados falsificados para aprovação do instituto, revela Maria Clara. Num caso recente, uma empresa apresentou fotos de um mesmo local para ilustrar a prospecção que teria ocorrido em áreas diferentes.
Enquanto o estudo arqueológico do governo brasileiro se limita a 40 técnicos - dos quais só metade tem formação na área -, em países como o México esse número salta para 800 colaboradores. Na França, são 400 servidores dedicados à prática. "É lamentável. Há situações em que o arqueólogo está trabalhando com o trator nas costas, a máquina está nos seus calcanhares", diz a diretora do Iphan. "Nosso desejo é que o governo federal nos atenda de uma melhor forma. Há uma lei federal que sustenta nosso trabalho, precisamos cumpri-la."
O avanço das obras de infraestrutura no País faz com que a área de arqueologia viva situação paradoxal. Enquanto não fazia parte do rito do licenciamento ambiental, até 1990, a pesquisa arqueológica dependia exclusivamente do interesse de pesquisadores e acadêmicos, limitando-se à realização de poucos projetos por ano.
Depois que passou a ser considerada uma etapa inerente ao processo de licenciamento ambiental, a chamada "arqueologia preventiva" - que antecede a liberação de um determinado empreendimento - passou a responder por 90% dos projetos analisados. Para os especialistas do setor, a situação é angustiante, já que, ao mesmo tempo em que traz uma oportunidade de pesquisa sem precedentes, também destrói sítios que não tiveram seus estudos aprofundados.
"Sempre se perde material, porque um resgate nunca ocorre em sua totalidade. O que se resgata é uma amostragem. Nada garante que aquilo que foi resgatado é o mais importante", diz Maria Clara.
Até o ano passado, havia nada menos que 17 mil sítios arqueológicos identificados no Brasil. Hoje, são 22 mil locais e o número não para de crescer. "Em cerca de 95% das obras encontra-se algum sítio arqueológico. Como esses empreendimentos têm avançado cada vez mais para áreas preservadas do País, principalmente para a região amazônica, há uma riqueza enorme de pesquisas pela frente", diz a diretora do Iphan.
Pela lei do patrimônio arqueológico, o aproveitamento econômico de um empreendimento não pode ocorrer antes do salvamento do bem arqueológico, que pertence à União. Maria Clara admite que o resgate costuma ocorrer concomitantemente à obra, desde que a área de recuperação esteja demarcada e possa ser explorada sem que haja prejuízo pelo andamento da construção.
"Compreendemos que o Brasil está interessado no desenvolvimento econômico, nas obras de infraestrutura", diz a diretora do Iphan. "Mas isso não pode ocorrer com o esquecimento de outros campos, senão estaremos jogando fora outro tipo de riqueza.
(Valor Econômico)
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Fonte: Jornal da Ciência - SBPC
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