BOLA QUADRADA NO CAMPO ENLAMEADO
'Esporte no Brasil é o seguinte: a gerência é privada, mas os recursos são públicos. Assim fica fácil', diz economista Elena Landau
O Estado de S.Paulo
CHRISTIAN CARVALHO CRUZ
Botafoguense tem cada uma... Dia desses a economista e advogada carioca Elena Landau praticava caminhada e sentiu uma dor aguda no quadril. "Fisgada no ilíaco. Meu amigo, você sabe o que é uma fisgada no ilíaco?", ela destrincha, na maior das intimidades atléticas com o músculo acomodado nas cavidades ósseas das ancas. Com dificuldade para andar, foi afastada pelo departamento médico das cadeiras do Engenhão, de onde costuma ver as partidas do Botafogo quando o time joga no Rio. Trocou o estádio pela sala de casa. A visão direta do campo, pela intermediação da TV. Bem sem graça, ela achou. "Só que aí o Botafogo começou a subir na tabela e eu não quis arriscar: melhorei do ilíaco, mas não voltei pro estádio", conta.
O time ainda vai bem no Campeonato Brasileiro, com chance de ser campeão. Se isso tem a ver com a heterodoxia de arquibancada de Elena, não há como saber. Mas não deixa de ser curioso comparar. Integrante da linha de economistas da PUC-RJ que formaram a zaga do governo FHC, naqueles tempos ela era chamada de ortodoxa por comandar - "sem jogo de cintura", diriam os oposicionistas de então - o processo de privatização das empresas públicas. A plaquinha na porta do escritório ajudava nessa imagem: diretora de desestatização do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES.
É de dentro da área, portanto, que Elena fala: "O projeto da Copa do Mundo no Brasil está errado de partida. É um evento privado, destinado a atender interesses privados, mas que conta com recursos públicos. Tem cidade que faria melhor uso do dinheiro do BNDES se construísse metrô e corredor de ônibus, porque não tem renda nem público suficiente para fazer um payback do investimento". Elena hoje trabalha como advogada numa grande banca no Rio e assessora o Instituto Teotônio Vilela, órgão de estudos ligado ao PSDB.
Numa semana rica em bolas quadradas rolando por campos enlameados - acusações contra o ministro do Esporte, Orlando Silva, ONGs de fachada, queda de braço entre o governo e a Fifa por meias-entradas e venda de cerveja nos estádios da Copa - o Aliás convocou Elena para comentar o jogo, mas ela avisou: "Houve um tempo em que eu acreditava que a gestão do esporte brasileiro podia mudar. Montei uma consultoria esportiva e até trabalhei no Atlético Mineiro e no Botafogo". Diz que desistiu por cansaço. Deu cãibra na paciência, estiramento no desencanto. Sentiu-se vencida pelo jogo travado que se disputa no setor e, apesar de conhecer bem a cancha, agora prefere atuar como uma torcedora especializada, por assim dizer. "Hoje em dia os meus comentários sobre esporte são de pessoa física." A eles, pois.
Esporte é questão de Estado?
Depende. O esporte ligado a educação, sociabilidade, cidadania e formação do indivíduo, como agente transformador de vidas, este é questão de Estado. Mas Copa do Mundo certamente não é. Trata-se de um evento privado. Como um show do U2 ou do Justin Bieber. Uma Copa só seria assunto de Estado se usada para alavancar uma transformação do espaço urbano. E, pelo que estamos vendo atualmente e também pela experiência dos Jogos Pan-Americanos de 2007 no Rio, sabemos que não é esse o caso. O Pan de 2007 não revitalizou nada, não melhorou a cidade. Tem o estádio do Engenhão, que é onde joga o meu Botafogo e é até um bom estádio. Mas e o entorno? Aquilo é um abandono só, não há sequer transporte público decente para chegar lá. Acho importante separar esses conceitos entre público e privado para entender as causas da precariedade do esporte no Brasil.
Terceirizar o esporte para ONGs seria uma dessas causas?
O Brasil conseguiu desmoralizar a utilização das ONGs, que conceitualmente têm valor. Mas houve um exagero nessa terceirização do esporte. No fundo, as ONGs de esporte fazem hoje o que a escola pública fazia antigamente, mas deixou de fazer por causa do abandono e da decadência do ensino público, decadência física, inclusive. Há colégios que não têm quadra de esportes e precisam fazer convênio com academia de ginástica para ter aula de educação física. Para resumir, eu diria que o Estado brasileiro deixou de cumprir seu papel. Se achamos que o esporte é suficientemente relevante a ponto de ter um ministério específico, precisamos definir uma política esportiva clara para o País. Mas ministério no Brasil serve para assegurar governabilidade, preencher cotas dos partidos da coalizão.
Nada se salva em termos de política esportiva por aqui?
Em 2016 vamos sediar uma Olimpíada no Rio. Ok. Mas queremos desenvolver seriamente quantas modalidades olímpicas até lá? Três? Trinta? Temos aptidão para todas elas? Vamos investir só nas quais já somos bons ou também nas quais precisamos melhorar? O Brasil nem sequer sabe responder a essas perguntas. O projeto do Ministério do Esporte para a Olimpíada no Rio em 2016 é só fazer a Olimpíada no Rio em 2016. É um projeto de obras, não um projeto esportivo. A Austrália, quando sediou os Jogos em 2000, criou um programa para a natação que dá frutos até hoje. Eles não queriam passar o vexame de não ganhar medalha dentro de casa. No Brasil impera a mentalidade da escavadeira: "Oba, vamos sediar uma Olimpíada porque assim podemos usar o orçamento pra fazer obra. Se ficarmos em último lugar no quadro de medalhas, não tem problema". É vergonhoso ver os ginastas brasileiros, que são uns heróis, talentosíssimos, mendigando patrocínio. E ao mesmo tempo ver uma ONG levando dinheiro do governo para comprar camiseta. Que diabo o governo tem que comprar camiseta pra ONG?! Por outro lado, não acho que ONG deva formar atletas olímpicos. Como se forma um atleta de competição, eu não sei. O Brasil vive de modismos, de ídolos momentâneos, como a seleção de vôlei do Bernardinho, o Gustavo Kuerten no tênis, anos atrás.
Mas por que nunca aproveitamos essas modas para criar uma política esportiva consistente?
O problema é que o Brasil não tem uma filosofia de trabalho nesse sentido, não segue nenhum dos dois modelos básicos de programas esportivos que conhecemos: o de participação maciça do Estado no desenvolvimento de atletas, como em Cuba ou na China, e o de formação nas escolas e universidades, como nos Estados Unidos. Aqui não temos nem um nem outro. Estamos perdidos no meio do caminho. Apesar de dizerem que nós temos a participação do Estado nos esportes, o fato é que o Brasil privatizou - e privatizou mal - os esportes. Entregou sem critério nenhum para federações e confederações, que não passam de feudos políticos. Então, quem cuida do esporte brasileiro? As ONGs, micro-organismos pulverizados e sem uma política unificada e organizada, ou as federações e confederações. Ou seja, quando é conveniente, o esporte é público, e aí pede dinheiro ao governo para os programas das ONGs, e quando não é conveniente, quando tem que prestar contas, ser transparente, reclama-se da interferência do governo em assunto privado. Eu sou a última pessoa a ser contra privatização de alguma coisa, mas vejo claramente uma apropriação indevida do esporte brasileiro pelo setor privado. Nosso modelo é o seguinte: a gerência é privada, mas os recursos são públicos. Assim fica fácil.
Qualquer semelhança com a Copa de 2014 é mera coincidência?
A Copa do Mundo é um evento da Fifa. Não é de governo de país nenhum e ninguém obriga um governo a se oferecer para sediá-la. Quem tem vontade de receber uma Copa se candidata porque quer. E desde o começo conhece as regras estabelecidas pelo dono do negócio, no caso, a Fifa. Então não vale agora, no final do segundo tempo, vir discutir se o Brasil está vendendo sua soberania ao ceder a pressões da Fifa para mudar esta e aquela legislação interna. Isso é uma bravata, uma coisa nacionalista, ufanismo bobo. Quando apresentou sua candidatura, o Brasil sabia perfeitamente onde estava se metendo. E aí fica discutindo a filigrana da meia-entrada e da venda de bebida dentro dos estádios. Aliás, deveriam aproveitar o momento para liberar de vez a venda de bebida. Isso é uma hipocrisia. Bebe-se tranquilamente nas barraquinhas em torno do estádio. E até parece que as torcidas organizadas deixam de brigar porque não podem mais beber. É simples resolver a questão da violência. O cidadão arrumou encrenca? Que ele seja retirado, fichado e impedido de voltar. A Inglaterra fez isso e funcionou...
Você falava que o Brasil conhecia as regras do jogo quando apresentou a candidatura.
Por causa do nosso histórico futebolístico, nós até gostaríamos de acreditar que para a Fifa é uma honra fazer uma copa no Brasil, o "país do futebol". Mas a Fifa, obviamente, não poderia estar ligando menos pra isso. O que ela quer é ganhar o dinheiro dela e acabou. Ela chega, não coloca um tostão, ganha bilhões e vai embora. Isso não é novidade. O projeto da Copa no Brasil está errado desde a partida, porque foi feito pela CBF, também uma empresa privada, a fim de preservar seus feudos políticos regionais. É um projeto sem sentido. O governo brasileiro entra com dinheiro público - dinheiro do meu, do seu, do nosso imposto - em um projeto privado destinado a atender somente a interesses privados. Aí vem o BNDES e financia estádios em locais que jamais terão público suficiente para fazer um payback do investimento. Jamais. Isso é dinheiro a fundo perdido. Nem o estádio do Corinthians vai dar retorno. Teria se o clube colocasse 60 mil pessoas lá dentro em todos os jogos. Mas vemos pelo Campeonato Brasileiro que a média de público do Corinthians, que tem a maior torcida do Brasil (os flamenguistas que me desculpem), mal chega à metade disso. Se o setor privado tivesse se interessado pela construção dos estádios, o BNDES poderia financiar a transformação urbana das cidades. Eu não vou citar quais, para não melindrar prefeitos e governadores, mas tem cidade aí que certamente faria melhor uso do dinheiro do BNDES se construísse metrô e corredor de ônibus.
Por que o setor privado não se interessou pelos estádios?
Por que eles não vão dar dinheiro. Fizeram algum estudo econômico sério nas sedes da Copa? Desconheço. Vamos ter estádio digno de país com renda per capita de US$ 10 mil encravados em cidade com renda per capita que é um quinto disso. Como é que a iniciativa privada vai se interessar por algo assim? Mas o problema maior é mais antigo, vem antes da Copa. Nós devíamos estar nos perguntando por que o Brasil, com toda sua força de pentacampeão do mundo e gerador de craques, não tem estádios com nível internacional até hoje. A resposta é simples: porque não tem público, a média de público é deprimente, e não tem público porque o futebol brasileiro não é feito para atender o público. Quem programa um jogo de futebol para as 10 da noite de quarta-feira não está interessado na receita gerada pelo público. Mas deveria estar, porque um tipo de geração de receita não exclui o outro. Na Europa adotam um modelo de receita tripla: tem a parte da televisão, a do público pagante e a do marketing dos clubes. Só que lá, quando você vai assistir a um jogo de futebol, o estádio é limpo, confortável, seguro, tem transporte público na porta, comida de qualidade, lojas, lugar marcado, horário decente para que o jogo seja um programa familiar e um calendário imexível. Não tem esse negócio de adiar jogo porque vai haver um amistoso inútil da seleção contra o Gabão só para satisfazer interesse de patrocinador da federação. Desse modo, o público é garantido; e público garantido faz brilhar os olhos do setor privado. Mas o que temos no Brasil? Se a CBF não faz nada direito no futebol interno, como é que podemos esperar que ela possa fazer uma Copa direito?
Você estatizaria a CBF?
Eu preferiria que não fosse privada. Ao contrário do que se fez no setor elétrico, por exemplo, em que a exploração do serviço foi concedida mediante licitação, nunca houve uma licitação que desse à CBF o direito e o monopólio de representar o futebol brasileiro. Mas não tem como mudar. Não há elemento jurídico para isso. Me incomoda que a CBF não esteja preocupada com o futebol brasileiro. Não vejo problema que ela ganhe dinheiro, desde que licitamente, mas acho mal resolvido o uso que ela faz dos símbolos da Nação. A CBF não tem dinheiro público, não tem subvenção, só que usa o verde-amarelo da nossa Bandeira, canta o Hino Nacional... Quem a elegeu para fazer isso por nós e quanto ela paga ao governo para usar esses símbolos? Então, eu preferiria que ela não fosse privada. Nós brasileiros damos muito mais à CBF do que a CBF dá para nós. O futebol brasileiro não amedronta mais adversário nenhum. Jogamos de igual para igual com a Costa Rica. E eu tenho certeza que a decadência está diretamente relacionada a essa administração da CBF.
A Fifa alega que pode ter prejuízo de R$ 1,8 bilhão se não houver as adequações que ela espera na Lei Geral da Copa.
Prejuízo?! Como é que ela pode ter prejuízo num negócio em que não está gastando nada? Não estou entendendo essa conta. A Fifa deve estar procurando uma desculpa, pensando se vale a pena fazer a Copa no Brasil ou não. Mas ela não vai levar o evento para outro país. A relação entre Fifa e CBF é muito forte. A Fifa só tira a Copa do Brasil se o Ricardo Teixeira (presidente da CBF) quiser, não tem nada a ver com o governo brasileiro.
Qual a sua avaliação sobre as denúncias de corrupção contra o ministro do Esporte, Orlando Silva, e o impacto delas na organização da Copa?
Me parece que desde o início da gestão a presidente Dilma Rousseff tinha a ideia de contar com alguém de fora do ministério para tocar a Copa. É um evento específico, não precisava misturar com o dia a dia do ministério. Mas isso não vingou. O fato de a presidente assumir o controle da Copa mostrou a importância que o governo brasileiro está dando ao evento, o que é muito bom. Dá mais moral para o cronograma, para a execução das obras. Agora os envolvidos terão de despachar diretamente com a presidente da República, e ela já tem essa imagem de gestora determinada, incisiva. Talvez seja uma boa oportunidade de colocar alguém no ministério com perfil estritamente técnico, para que a pasta deixe de ser só essa simples repassadora de verba para ONGs.
ELENA LANDAU é economista, advogada, ex-diretora do BNDES, ex-consultora em Gestão Esportiva e botafoguense
Fonte: Estadão
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