domingo, 3 de setembro de 2017

"A República Agrotóxica do Brasil", artigo de Denis R. Burgierman





Este país é uma operação de exportação de commodities. Todo o resto está a serviço disso 

Você provavelmente nem sabe disso – não está em nenhum jornal. Mas, daqui a alguns dias, o governo vai baixar uma medida provisória mudando radicalmente o regime de aprovação de agrotóxicos no país. Segundo os ativistas que estão tentando acompanhar essa história, tudo indica que a nova lei, entre outras coisas, permitirá o registro de agrotóxicos mesmo que eles sejam comprovadamente cancerígenos, retirará a caveira com ossos das embalagens e rebatizará os “agrotóxicos” como “defensivos fitossanitários”, porque todo mundo precisa de um “rebranding” de vez em quando. Tudo sem nenhuma discussão pública, decidido a portas fechadas entre Michel Temer, o ministro da Agricultura Blairo Maggi e os parlamentares ruralistas que ocupam quase metade das poltronas acolchoadas do Congresso Nacional. 

Só sei dessa notícia porque assisti a uma reportagem no Canal Rural que continha uma entrevista com o ministro, na qual ele usa palavras difíceis para ocultar o que a medida provisória realmente pretende. Não é interessante essa característica da república brasileira? Que decisões fundamentais para o Brasil – o futuro da economia, o modelo produtivo do país, o alimento que comemos, o câncer da geração dos nossos filhos – sejam tomadas assim nas sombras, com cobertura apenas do Canal Rural? 

O Brasil, visto de alguns ângulos, tem aparência de democracia – imprensa relativamente livre, sufrágio universal, instituições mal e mal de pé. Mas, nas questões realmente cruciais, isso daqui é uma ditadura – está tudo pré-definido e fechado para discussão. Fui percebendo isso ao longo das últimas duas semanas, enquanto pesquisava o assunto para um roteiro de TV (o “Greg News” desta sexta (18), assista!).

"Se você somar todo o Imposto Territorial Rural que todos os grandes fazendeiros pagam em todo o território nacional, não dá aquilo que São Caetano do Sul arrecada com IPTU..."

Conversei com um defensor público chamado Marcelo Novaes, que ficou me contando do quanto é fácil ser latifundiário no Brasil – desde que você possua um latifúndio, claro. Enquanto eu fico aqui lutando para escapar da malha fina da Receita depois de dar a eles 30% de tudo que eu produzi, os milionários monocultores exportadores, quando muito, pagam 5%, segundo os cálculos de Novaes. São isentos de contribuir com a Previdência – aquela que o Temer diz que vai quebrar por causa de você. Se você somar todo o Imposto Territorial Rural que todos os grandes fazendeiros pagam em todo o território nacional, não dá aquilo que São Caetano do Sul arrecada com IPTU, também segundo os cálculos de Novaes. Você paga por sua terra milhares de vezes mais que o Blairo Maggi. 

Agrotóxico no Brasil tem benefício fiscal – descontão de 60% no ICMS, isenção de IPI. Não surpreende que em nenhum outro país do mundo venda-se tanto agrotóxico (benefício fiscal a um produto, como se sabe, serve para incentivar seu uso). O Brasil é o maior mercado do mundo para as grandes multinacionais de agrotóxicos, que exportam bilhões de dólares ao ano para cá, e que são parceiras comerciais dos grandes fazendeiros que dominam o Congresso.

"Agrotóxico no Brasil tem benefício fiscal – descontão de 60% no ICMS, isenção de IPI. Não surpreende que em nenhum outro país do mundo venda-se tanto agrotóxico (benefício fiscal a um produto, como se sabe, serve para incentivar seu uso). O Brasil é o maior mercado do mundo para as grandes multinacionais de agrotóxicos..."


Os congressistas da bancada ruralista elegem-se com o discurso de que são defensores da gente do campo e da agricultura que alimenta o país. Trata-se de uma mentira. O setor que eles representam é, sim, fundamental para a balança comercial brasileira – contribui com quase metade das receitas de exportação. Mas gera uma quantidade pífia de empregos: embora ocupe três quartos das terras produtivas do país, oferece apenas um quarto dos postos de trabalho. Ou seja, essa fortuna fabulosa que as exportações de commodities brasileiras geram se espalha muito pouco pelo resto da economia. 

Mentira também que as grandes monoculturas alimentem o Brasil. O que alimenta o Brasil é a agricultura familiar, que contribui com 70% do que comemos. As monoculturas que controlam 75% das terras produtivas do Brasil são incapazes de produzir o que precisamos para nos alimentar: limitam-se a fazer commodities, parte delas destinadas a usos industriais, como álcool para combustível, algodão para tecidos, tabaco para cigarros. As indústrias de soja, milho, carne e cana são imensas, mas alimentam muito mais bicho que gente, e muito mais estrangeiro que brasileiro. 

Os caras se autobatizaram bancada ruralista, como se fossem os defensores de toda a zona rural do país. Na realidade, eles estão a serviço de bem poucos – só 1% dos proprietários rurais, que controlam metade das terras do país, com um modelo de produção completamente dependente de meia dúzia de multinacionais petroquímicas que ensopam o Brasil de veneno, prejudicando a saúde de toda a população rural. Não devíamos chamá-los de ruralistas – é a bancada agrotóxica. 

E agora fico sabendo que ela está toda mobilizada para mudar o sistema eleitoral de um jeito que o distorce ainda mais. A ideia do distritão praticamente assegura aos deputados-latifundiários os assentos no Congresso relativos às regiões das quais são donos. E o engordamento do fundo partidário cria um mecanismo para que o próprio Estado financie o saque que está sofrendo. É uma reforma pensada para reeleger quem já tem mandato. 

E, consequentemente, para gerar incentivos ainda mais pesados para a concentração cada vez maior de terras, o que vai tornando o Brasil cada vez mais injusto e desigual. Enquanto todos os países modernos tentam criar modelos inclusivos, que levem a uma distribuição de terra mais eficaz e igualitária, com mais gente podendo participar do jogo, aqui sempre fomos um país com oportunidades para poucos, que ficam cada vez mais poucos

Por tudo isso, o setor agrário exportador tem um poder completamente desproporcional na nossa república. É incrível como as instituições da democracia brasileira simplesmente não funcionam quando deparam com esse poder. O sistema de saúde rural atende mal quem aparece reclamando de sintomas causados pelo excesso de veneno e nem sequer monitora esses casos. O sistema de justiça em regiões produtoras de commodities praticamente não investiga assassinatos cometidos por grandes fazendeiros – tipo de crime que está batendo recordes no Brasil. A imprensa e a população não têm acesso a dados de óbvio interesse público, como os de incidência de câncer em regiões produtoras, ou de benefícios fiscais ao agronegócio – eles são praticamente impossíveis de encontrar, de tão escondidos que estão no cipoal jurídico e fiscal desta nação. O sistema político nem discute, a sociedade mal debate. Vivemos na República Agrotóxica do Brasil. 

Nessa república, pagamos impostos tão altos, em grande parte, para financiar os impostos baixos que a bancada agrotóxica garante para o seu setor. Algo similar ocorre em relação aos juros absurdamente altos que nos impõem para subsidiar os juros baixos deles. Vivemos em permanente deficit de justiça, de saúde e de educação, para que eles lucrem mais. Aceitamos termos menos voz na democracia para que eles possam moldar o país aos seus interesses. Não me parece justo. 


Denis R. Burgierman é jornalista e escreveu livros como “O Fim da Guerra”, sobre políticas de drogas, e “Piratas no Fim do Mundo”, sobre a caça às baleias na Antártica. É roteirista do “Greg News”, foi diretor de redação de revistas como “Superinteressante” e “Vida Simples”, e comandou a curadoria do TEDxAmazônia, em 2010. Escreve quinzenalmente, às sextas-feiras, sobre a vida e suas complexidades.


Fonte: Nexo












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