A entrevista abaixo, publicada em 2009, apresenta o alerta de um dos mais importantes cientistas brasileiros, o geógrafo Aziz Ab'Saber, recentemente falecido.
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03 de Dezembro de 2009
Entrevista / Aziz Ab’ Saber
É urgente conter o aquecimento global
O papel das universidades é crucial. Elas precisam recuperar e produzir conhecimentos que nos permitam entender a realidade em cada território e enfrentar as mudanças climáticas nos diversos ecossistemas
por Maíra Kubík Mano
Le Monde Diplomatique Brasil – Como a universidade se coloca diante de questões prementes, como as mudanças climáticas?
Aziz Ab’Saber – Uma das questões mais importantes na atualidade é a universidade. Nos últimos tempos houve mudanças, protecionismos especiais, de tal maneira que muitas escolas superiores foram criadas. Estou preocupado com a qualidade do ensino superior, com a pesquisa e com uma espécie de projeção necessária dos conhecimentos a favor do país em termos de sociedade, território, natureza etc.
Meu conceito de universidade é válido para podermos aplicar aos mais diferentes casos de escolas superiores existentes no Brasil e se resume a dizer que uma instituição desse porte tem algumas preocupações fundamentais. A primeira, que depois se desdobra em numerosas outras, é a recuperação do conhecimento acumulado em todos os setores possíveis. Na física, na química, na biologia, na geografia, na geologia, nas ciências humanas essenciais, antropologia cultural, psicologia etc. E com ênfase na tecnologia, por vivermos em um país tão grande e com crescimento rápido, mas muito desigual. Isso significa que a universidade que não tiver um bom conceito em tecnologia certamente é fraca.
Além da recuperação do conhecimento feito pelos homens em todas as épocas e em todos os lugares do mundo há a questão da produção científica. Aí então é que o problema se torna mais sério: universidade que não tem capacidade de produção científica nos diversos ramos do conhecimento não é universidade. Apenas toma um nome que alguém lhe deu eleitoreiramente e economicamente. E essa é a maioria, infelizmente. Não quero atacar nenhuma dessas escolas mais novas porque elas foram muito favorecidas por governantes e por programas como o ProUni (Programa Universidade para Todos, do governo federal), mas é a realidade.
A produção científica passou a ser o básico para avaliar uma universidade. Enquanto a recuperação do conhecimento popular é o passado, a pesquisa científica é o presente visando o futuro. E é esse retorno que as instituições de ensino superior devem dar para a sociedade, temos problemas inumeráveis, alguns inacreditáveis.
Eu sei de um caso em que uma pessoa formada na Universidade de São Paulo, numa área importantíssima em termos de estudo da natureza, a fitogeografia, que conseguiu, através de grande esforço pessoal, os aparelhos necessários para estudar as plantas. Mas até agora esses equipamentos literalmente estão trancados, pelas mãos de terceiros. Além disso, algumas escolas que pretendem ser muito operantes em pesquisas, em setores de grande necessidade para o país, têm apenas um profissional.
Isso ocorre em áreas como fitoquímica, o que não é suficiente para, por exemplo, estudar os ecossistemas: o que implica em trabalho sobre o suporte ecológico do ecossistema, que é o solo, com todos os seus componentes, mais a água e elementos biogênicos, as raízes, os micro-organismos.
O mesmo ocorre com uma biota, o conjunto dos seres animais e vegetais de uma região. Completíssima, a biota tem componentes vegetais, animais e micro-orgânicos, e cada um deles é estudado por pessoas diferentes. É preciso haver equipes, em primeiro lugar, e que elas sejam capazes de estudar essas partes diferentes, mas de forma coordenada.
Isso vale também para algo muito caro: a dinâmica climática mantenedora do ecossistema. O mesmo acontece no caso das ações antrópicas. É preciso estudar os impactos do homem, que se alteram a depender se constrói cidades fantásticas ou caóticas, se o uso do transporte coletivo ou do carro é incentivado etc. Hoje, no Brasil, qualquer pessoa pode comprar um carro – não sei se consegue pagar o financiamento depois – e o resultado é que entre 70% e 80% desses automóveis transportam apenas um passageiro. Pessoas sozinhas, que não levam amigos, familiares, nada. Felizmente os carros se tornaram menores, se eles fossem como há 50 anos seria bem pior.
Diplomatique – Houve também o impulso dos biocombustíveis, que melhoraram um pouco a situação.
Aziz Ab’Saber – Sim. A questão da circulação em relação ao meio ambiente, no caso de veículos que usam biodiesel, e no Brasil, particularmente o álcool, está num patamar um pouco melhor do que no resto do mundo. Eu já estive em cidades na América do Sul em que o cheiro principal era de gasolina. Contudo, pela quantidade dos carros que transitam nas cidades e estradas brasileiras, posso dizer que a situação ainda é muito problemática. Há ainda muita poluição pela emissão de combustíveis.
Diplomatique – Quais outras questões estão postas para os centros urbanos?
Aziz Ab’Saber – Bem, outro conceito fundamental que a universidade deveria cuidar melhor é o de metabolismo urbano. Nos Estados Unidos, na década de 1960, se fez uma conceituação de dados integrativos que ocorrem no mundo urbano.
Trata-se de um estudo sobre a problemática ambiental que está sendo aplicado na prática apenas agora. Diziam que no mundo urbano existia o in up, o flow up e o out up, ou seja, aquilo que entra, o que transita e o que é deletado para os solos, a água, o ar. Essa noção integrativa é importante, mas é preciso melhorá-la, pois o que entra já traz consigo a penetração de poluentes. Por exemplo, cada estrada que vem para São Paulo já é um eixo de poluição antes de chegar ao centro da cidade. E essa poluição é exagerada por duas razões. Primeiro, pela massa de veículos que chega e vem liberando gases. Segundo, pelos gases das indústrias que atingem o centro urbano. Todo mundo se lembra da crise climática em Cubatão (SP), município que fica a menos de 60 quilômetros da capital. Aquilo foi muito grave e ocorreu porque as torres das usinas de tratamento de petróleo e das fábricas iam até 1.300 metros, 1.400 metros de altura e o vento úmido empurrava as nuvens para dentro da cidade.
Ou seja, é uma demonstração de que não houve planejamento para que a cidade se desenvolvesse. Isso é importantíssimo. É preciso haver um senso de planejamento. Esse tipo de tarefa pode ser feita com cursos interdisciplinares nas universidades.
Hoje esses estudos ocorrem, mas são pesquisas isoladas, não têm uma visão do todo e não consegue prever impactos locais, regionais e em especial de maior alcance do desenvolvimento. Prever impactos é ter a condição de fazer análises de um projeto ao longo do tempo. E isso é um dever da universidade.
Diplomatique – Mas também falta diálogo com os governos para formular políticas públicas e com o Brasil crescendo cada vez mais, segundo o discurso econômico atual, isso não é urgente?
Aziz Ab’Saber – Sim, falta diálogo e vontade. De fato, está havendo aquecimento global. A temperatura de São Paulo, por exemplo, subiu consideravelmente nos últimos tempos, resultado principalmente da somatória do calor da superfície, decorrente da industrialização que se expandiu. Claro, muitas indústrias têm saído de São Paulo atualmente, mas o problema do aquecimento não é dependente de uma situação nova, mas da somatória das áreas. Daí entra a discussão sobre o óptimum climático, que aconteceu num período entre 6 mil e 5 mil anos atrás. Naquela época também houve um aquecimento do planeta, mas foi natural, e não causado pelo acúmulo dos gases na atmosfera, como hoje. O aquecimento chegou a tal ponto que elevou o nível do mar em 2,9 metros do registrado hoje. Isso ficou evidente no mar Mediterrâneo, na costa do Líbano, por exemplo. Agora, não. A questão hoje é o excesso de gases jogados pelo homem. É urgente reduzi-los.
Diplomatique – Como o Brasil deve lidar com esse cenário?
Aziz Ab’Saber – Para mim, o principal problema que o Brasil tem que enfrentar é o desmatamento na Amazônia, que é decorrência do neocapitalismo. Fala-se em redução, em desmatamento zero a partir de agora, e evita-se entrar no debate do que já aconteceu. É preciso bloquear o desmatamento, não negociar porcentagens, e isso significa impedir que os espaços virem mercadoria.
Maíra Kubík Mano é jornalista e editora de Le Monde Diplomatique Brasil.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
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