segunda-feira, 4 de junho de 2018

Atlas inédito revela mau uso da terra no estado, que tem 884 espécies exclusivas de plantas



No Alto da Boa Vista, a “Mandevilla crassinoda” reina sozinha sobre a cidade: ela só existe nas encostas rochosas da Pedra da Gávea, do Corcovado e da Pedra Bonita - Márcia Foletto 


Ana Lúcia Azevedo

No RJ, 60% das terras são usadas com atividades que geram somente 0,4% do PIB

RIO - O brasão do Estado do Rio ostenta a silhueta da Serra dos Órgãos e uma águia. Se trocasse o simbolismo pela realidade, exibiria um pasto e uma flor rara. A despeito do pendor pelas montanhas, o Rio é dominado por pastagens, que ocupam 52% do território fluminense, como informa um atlas inédito sobre a flora do estado e as áreas vitais para conservação. Somados os 8% usados para a atividade agrícola, toda essa terra gera apenas 0,4% do PIB estadual.

Porém, o atlas mostra que o estado, no verde que restou, abriga 884 espécies de plantas endêmicas, isto é, que existem somente aqui. Número tão alto revela uma biodiversidade de quilate amazônico e de importância mundial, mas quase toda ela pouco conhecida. Tamanha concentração de extremos entre riqueza e desperdício de recursos naturais surpreende pesquisadores experientes. O Rio é um gigante quando se fala de flora. Para um país, 884 espécies exclusivas já seria um número elevado.

— Para um estado tão pequeno (o quarto menor do país), impressiona, e muito — diz Rafael Loyola, coordenador do Laboratório de Biogeografia da Conservação da Universidade Federal de Goiás e principal autor do atlas.

O tamanho das áreas com pastagens também:

— Elas se tornaram parte da paisagem, fruto de degradação histórica. Acho que, por isso, é difícil se dar conta da dimensão do desperdício. Essa terra devastada é insignificante para a economia, nociva para a natureza, uma zona morta — frisa Loyola.

ÁREAS VITAIS PARA A CONSERVAÇÃO


Classificada no atlas como deficiente de dados (DD), a “Barbacenia squamata” é espécie endêmica do estado - Márcia Foletto

Chamado de “Áreas prioritárias para a conservação da flora endêmica do Estado do Rio de Janeiro”, o atlas é resultado de pesquisas do Centro Nacional de Conservação da Flora (CNCFlora), do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, da Universidade Federal de Goiás e da Secretaria estadual do Ambiente do Rio (SEA).

O objetivo do trabalho foi não apenas identificar as áreas vitais para a flora, mas para os serviços ambientais que ela presta, principalmente a manutenção dos recursos hídricos.

— A ideia é restaurar a água. E sem vegetação não há água — frisa Gustavo Martinelli, coordenador-geral do CNCFlora, que há 46 anos se dedica ao estudo da flora do estado.

O atlas será lançado amanhã, Dia Mundial do Meio Ambiente.

— Temos tanta terra improdutiva que podemos aumentar o PIB do estado sem derrubar uma única árvore. Essa é uma oportunidade de desenvolvimento que deveria estar na pauta dos candidatos ao governo e ao legislativo estaduais — afirma Fabio Scarano, diretor-executivo da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS) e um dos maiores especialistas em Mata Atlântica do país.

Baseado em dados da SEA de 2016, o atlas salienta que a agropecuária ocupa 60% dos 43.696 quilômetros quadrados de área do estado. Dados do IBGE do mesmo ano não são muito diferentes. Indicam que as pastagens cobrem 47,7% do território estadual — principalmente no Norte e na região do Vale do Paraíba — e a agricultura, bem mais rentável, 7,1%, em boa parte concentrada na Serra Fluminense.

Os números do PIB estadual também são semelhantes. As Contas Regionais 2015 do IBGE, que contêm os dados mais recentes do instituto a esse respeito, mostram que a agropecuária gerou 0,5% do PIB fluminense, ou R$ 2,7 bilhões em 2015. A pecuária fluminense sozinha é tão insignificante que precisa ser somada à agricultura para ser contabilizada.

“O PIOR EM USO DA TERRA”

Bruno Santiago, do IBGE, sublinha que a pecuária é quase toda extensiva. Só existe pecuária intensiva em Rio das Ostras, Cabo Frio e Magé.

— O restante é uma pecuária que seria até eufemismo chamar de extensiva. Se todas as vacas do Estado do Rio fossem reunidas em 10% da área que ocupam hoje, elas não se encontrariam nem uma vez por semana. O Rio é um microcosmo do pior em uso da terra. Muitas vezes, somente para não deixar que a floresta se regenere naturalmente, e pela Lei da Mata Atlântica não possa ser derrubada, os proprietários preferem manter a terra como pasto degradado — afirma Bernardo Strassburg, diretor-executivo do Instituto Internacional para Sustentabilidade.

Strassburg não participou do desenvolvimento do atlas, mas desenvolve um estudo sobre a restauração de vegetação no mundo:

— O ponto mais vermelho do mapa mundial no que diz respeito à riqueza da biodiversidade e ao mau uso do solo é o Estado do Rio. Temos um território inútil tão grande que fica difícil compreender como chegamos a esse ponto.

As matas começaram a ser derrubadas no ciclo do pau-brasil. A devastação continuou nos séculos seguintes para dar espaço à cana-de-açúcar e prosseguiu no ciclo do café. Nos anos 70 do século XX, os solos de boa parte do estado já eram dados por esgotados. As áreas degradadas acabaram por receber pastagens, muitas vezes para manter a posse da terra.

“MERA ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA”

A pecuária nunca se mostrou como vocação das terras fluminenses. “O gado bovino constitui um espetáculo penoso, ferido e comido pela larva branca (berne). Chegará o dia em que a boa carne de São Paulo e do Paraná suplantará, no Rio de Janeiro, a carne de animais cansados, mal alimentados e comidos pelas larvas.” A descrição é do diplomata, naturalista e aventureiro inglês Richard Burton, que esteve no Rio em 1867.

Hoje, o Rio já ultrapassou até o limite do pudor de deixar algumas escassas vacas magras “para inglês ver”. Segundo Scarano, dos 170 milhões de hectares do território do Brasil ocupados pela pecuária, 60 milhões têm menos de uma vaca por hectare — vastas áreas de pastos não têm vaca alguma. Segundo o IBGE, o rebanho bovino do estado soma 2.409.718 cabeças (menos de uma vaca por hectare). “São áreas degradadas e, quase sempre, mantidas para garantir a posse da terra, mera especulação imobiliária”, diz Scarano.

Strassburg assegura que cada hectare recuperado, pela agricultura, pela agrofloresta ou por restauração da Mata Atlântica significará ganho concreto, pois “nos pastos do Rio, qualquer coisa vai competir com o nada”. Mas é preciso criar infraestrutura para que um setor improdutivo mude de vocação. O estado tem, por exemplo, terras boas para a plantação de árvores de madeira comercial e sustentável. “Existem sistemas de créditos. Mas não existe uma política voltada para isso”, acrescenta.

AMEAÇA ATINGE FLORA AINDA DESCONHECIDA

Da Pedra Bonita, se avista a beleza que garante à paisagem do Rio o título de maravilhosa. Mas, para ver como a natureza foi, de fato, generosa com a cidade, é preciso olhar para o cume da montanha. Ali vive uma planta que, de tão rara, nem nome popular tem. A Mandevilla crassinoda existe somente nas encostas rochosas cariocas. Seu mundo seu resume às pedras da Gávea e Bonita e ao Corcovado.

Quando se diz que o estado tem biodiversidade assombrosa, não há exagero. Mas ela vem sendo destruída em velocidade espantosa. Muitas espécies desaparecem antes de serem conhecidas.

— A velocidade da destruição é maior do que a nossa capacidade de aprender e proteger. Perder biodiversidade é desperdiçar o futuro — afirma Gustavo Martinelli.

Das 884 espécies de plantas endêmicas do estado, 513 (58%) estão ameaçadas de extinção. Isso representa 20% da lista oficial de extinção da flora do país. Há exemplos ainda mais extremos. A Barbacenia gaveensis, que existe apenas na Floresta da Tijuca, é classificada como “criticamente em perigo de extinção”. Quase tão rara é a samambaia Doryopteris tijucana, outra que só vive nas encostas rochosas do Parque Nacional da Tijuca.

Rafael Loyola salienta que a Região Metropolitana concentra as maiores áreas de cobertura vegetal no estado, com 16% de todos os remanescentes. Nela, reina o Parque Nacional da Tijuca.

— Estamos falando de 129 espécies de plantas exclusivas numa floresta no centro da segunda metrópole do Brasil, cercada por gente, sob pressão. Não existe nada semelhante no mundo — frisa Loyola.

No Morro do Cuca, em Petrópolis, está um dos últimos refúgios na natureza da imperatriz-do-Brasil, uma planta ornamental que também só vive no estado. A imperatriz (Worsleya procera) ou rabo-de-galo há décadas é coletada sem controle. Está em extinção. Marcio Verdi, coordenador de Inventários Florísticos do CNCFlora, diz que o alto custo de seu cultivo faz com que seja muito coletada. Martinelli diz que a imperatriz é um fóssil vivo, sobrevivente de outras eras. Suas flores estão sempre voltadas para o norte, e não se sabe o motivo.

— Os terrenos íngremes do Rio salvaram a Mata Atlântica da total devastação. A imperatriz é um exemplo — diz Martinelli.

O foco do atlas, acrescenta Loyola, não é propor a criação de novas unidades de conservação. O objetivo é trabalhar com educação ambiental e fomento de políticas públicas de uso sustentável e restauração de áreas particulares.

Se deixada em paz, a Mata Atlântica, quase sempre, consegue se regenerar sozinha. Ver a mata de volta é o sonho e a dedicação da vida de Martinelli.

— Quem sabe um dia o mar de pastos se torna de novo um mar de florestas?


Fonte: O Globo








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