terça-feira, 18 de março de 2014

Seu Bichinho é o guardião do Morro das Andorinhas há 72 anos


Ele é o cara. No quintal de casa: seu Bichinho come uma couve-flor inteira e, nas trilhas, ganha de qualquer um Márcio Alves

Américo de Souza vive desde os 8 anos numa comunidade localizada no meio da Serra da Tiririca, em Niterói


Natasha Mazzacaro

NITERÓI — É provável que seu Bichinho nunca tenha ouvido falar em Jean-Jacques Rousseau, o filósofo francês que bolou a teoria do Bom Selvagem e defendia que o meio urbano corrompe o homem, enquanto a natureza o redime. Mesmo assim, graças a uma sabedoria instintiva — meio nata, meio aprendida —, ele optou por não viver em meio a fios, buzinas e prédios mais altos do que sua lógica poderia explicar. Em vez disso, seu Bichinho vive há 72 anos num casebre escondido no meio da mata, onde acorda todo dia com o canto assanhado dos sabiás que, faceiros, aparecem para roubar as frutas de seu quintal.

Américo Fernandes de Souza, como foi agraciado por sua mãe há exatas oito décadas, é o integrante mais antigo da comunidade tradicional do Morro das Andorinhas. Sua história começa assim: nos idos de 1870, um pescador chamado Leonel Siqueira da Silva estava no meio de uma de suas andanças por Itaipu quando decidiu fincar moradia no alto da montanha, a fim de explorar novos pontos de pesca na região. Teve filhos, que tiveram netos. Um deles, que se dividia entre os peixes e a profissão de barbeiro, foi um dia para Itaipuaçu para cortar os cabelos de uma dona de casa viúva: apaixonou-se e acabou voltando com ela e seus filhos para viver nas Andorinhas. Seu Bichinho tinha, na época, 8 anos de idade.

Isolado no meio da mata, Seu Bichinho se lembra bem daquele tempo. Sua avó postiça era índia e, como a região era desconhecida pela população da cidade, andava com os seios nus, executando os afazeres da casa. Metade dos filhos pescava e a outra parte lavrava a terra. Por lá, plantava-se de tudo, de modo que só era necessário comprar sal, fósforo e querosene. De vez em quando, acompanhava os tropeiros que levavam banana “para Niterói”, que é como ele se refere ao Centro da cidade, mesmo estando o Morro das Andorinhas no mesmo município.

— Tive uma infância de muito trabalho e só estudei até a 2ª série (atual 3º ano fundamental). Até a data de hoje, não sei fazer pipa nem andar de bicicleta. Minha única brincadeira era um piãozinho, que a gente fazia com a raiz da jaqueira. Todo amarelinho, uma beleza — diz ele, sempre sorridente.
No Morro das Andorinhas, Seu Bichinho também formou sua família. Conheceu dona Ida, que era filha de pescadores, e com ela teve oito herdeiros.

— Quem teve as crianças foi Dona Encrenca. Eu só criei — conta, às gargalhadas. — Naquele tempo não tinha luz elétrica nem muita coisa para fazer.

Seu Bichinho se dividiu a vida toda entre a pesca e o plantio e, quando as coisas começavam a apertar, arranjava um biscate como ajudante de pedreiro. Apesar de ter trabalhado muito a vida toda, seu maior ofício mesmo foi o de guardião do Morro das Andorinhas. Antes mesmo de a área ser integrada ao Parque Estadual da Serra da Tiririca, em 1992, ele já tomava conta do seu “quintal”. É ele quem ajuda a manter limpas as trilhas que dão acesso aos mirantes de Itaipu e Itacoatiara. Quando aparece algum foco de incêndio, Seu Bichinho é o primeiro a chegar. Às vezes, ensinando até uma coisa ou outra aos mais experientes:

— Um dia caiu um balão aqui, e o fogo começou a se espalhar. Corri para lá e comecei a separar o mato com a foice. E os bombeiros só tentando abafar o fogo, que chegou no ponto onde eu estava e parou. Aí, o capitão ficou todo espantado, né?

Lição, por sinal, é o que não falta. Toda semana, sobem e descem um sem-número de turistas, rumo ao mirante de Itacoatiara. Com corpo esguio, postura ereta e os músculos ainda rígidos, ele, não raro, passa todo mundo em disparada. A troça geralmente é garantia de risadas entre os visitantes. Um dos seus filhos acrescenta que ele vai até a Praia de Itaipu em 15 minutos, enquanto uma pessoa com preparo físico regular faz o mesmo percurso em, no mínimo, meia hora. Talvez por isso, ele tenha apenas uma dorzinha nas costas. “A cabeça vai muito bem”, obrigado!

Tirando um probleminha ou outro — na maioria das vezes relacionado à água, que só chega quando chove e enche a caixa de reserva —, a vida de Seu Bichinho é boa. Sua casa fica próxima às outras 13 que compõem a comunidade (todas as 39 pessoas que moram lá pertencem à mesma família, a única permitida pelo Parque da Tiririca), acorda às 3h para varrer o terreiro, comemora quando Dona Ida faz couve-flor (“como uma inteira sozinho”) e passa o dia cuidando de uma plantação, que mantém fora da área de preservação. Às 18h, nem experimente procurá-lo: Seu Bichinho é minhoca da terra e dorme com as galinhas. Nos sonhos, ele se imagina visitando o Pão de Açúcar, lugar que nunca conheceu.

— Sabe quantos anos tem essa árvore que eu plantei? Durmo de janela aberta, e a bicharada anda no meu quintal como se fosse cachorro. Só saio daqui depois de morto — diz ele, mais inteligente do que qualquer filósofo graduado.

Fonte: O Globo Niterói







3 comentários:

  1. Descanse em paz querido bichinho 🙌🕊️

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  2. Um homem íntegro,tive o prazer de conhecê-lo.

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  3. Ele foi um bom homem, um bom pai, um bom esposo, um bom avô, um bom amigo, e principalmente um bom ser humano, ele foi luz para Itaipu!! Descanse em paz✨

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