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Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Ao reconstruir a história evolutiva das amebas, pesquisadores brasileiros demonstraram que a Terra no fim do Pré-Cambriano – há, pelo menos, 750 milhões de anos – era muito mais diversa do que sugeria a teoria clássica. O estudo, apoiado pela FAPESP, revelou oito linhagens de ancestrais das teca-amebas, grupo cujos indivíduos são parcialmente cobertos por uma carapaça.
As teca-amebas representam o maior grupo do clado (conjunto de organismos originados de um ancestral comum) Amoebozoa, uma grande linhagem de organismos que se locomovem por tentáculos chamados pseudópodes.
A descoberta de maior diversidade de espécies de amebas tem impacto também nas interpretações sobre a evolução da atmosfera terrestre e das mudanças climáticas.
No trabalho, publicado na revista Current Biology, pesquisadores do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) em parceria com a Mississippi State University, nos Estados Unidos, usaram técnicas inovadoras para a reconstrução da árvore de relações de parentesco (filogenética) das teca-amebas (Arcellinida).
Ao montar a nova árvore filogenética a partir de algoritmos matemáticos – e com base no estudo da expressão gênica (transcriptoma) de células de 19 Arcellinida encontradas hoje na natureza –, os pesquisadores também conseguiram estabelecer a morfologia e a composição dos ancestrais hipotéticos desse grupo de amebas. O estudo permitiu ainda a comparação desses ancestrais com registros fósseis.
Como resultado, revelou-se que há, pelo menos, 750 milhões de anos ancestrais das teca-amebas estavam já em processo evolutivo, o que torna o fim do Pré-Cambriano mais diverso do que o imaginado.
“Juntamos duas grandes áreas da ciência, a paleontologia e a área da biologia que estuda e reconstrói as relações de parentesco dos organismos – a sistemática filogenética –, para chegarmos a uma única conclusão. Dessa forma, foi possível desatar um nó das teorias da evolução da vida no planeta”, disse Daniel Lahr, professor do IB-USP e autor principal do artigo.
Com o trabalho, foi possível ainda desmontar completamente a classificação anterior do grupo das teca-amebas. “Conseguimos desenvolver uma estrutura robusta e, pela primeira vez, descobrimos oito linhagens profundas (de 750 milhões de anos) de Arcellinida, algo que não se sabia da existência”, disse à Agência FAPESP.
A antiga classificação das teca-amebas era baseada na composição da carapaça. “Elas eram divididas em aglutinadas ou orgânicas. Porém, fazendo a reconstrução molecular, descobrimos que a classificação é realmente determinada pela forma da carapaça e não por sua composição”, disse Lahr.
De acordo com o pesquisador, a antiga classificação já estava sob questionamento há alguns anos, mas faltavam provas suficientes para derrubá-la. Estudos genéticos anteriores haviam mostrado que a classificação atual não tinha suporte, porém, não existiam dados suficientes para sugerir uma nova classificação.
“Havia uma suspeita na comunidade científica de que as Arcellinida já tinham surgido e estavam diversificadas – tendo passado, portanto, por processo evolutivo – há 750 milhões de anos. Agora conseguimos demonstrar essa hipótese”, disse.
Passado e futuro
De acordo com Lahr, o estudo traz uma visão diferente sobre como os microrganismos evoluíram no planeta. Para o final do Pré-Cambriano, era atribuída a existência de baixa diversidade de seres vivos, com apenas poucas espécies de bactéria e alguns protistas.
“Foi também nesse período, há 800 milhões de anos, que ocorreu a oxigenação dos oceanos e, por muito tempo, assumiu-se que esse fenômeno levou a uma diversificação dos eucariontes, seres uni ou pluricelulares com o núcleo celular isolado por membrana. Isso teria culminado na diversificação de macrorganismos milhões de anos depois, já no período Cambriano”, disse Lahr.
O estudo publicado na Current Biology está olhando para um detalhe dessa questão. “Mostramos que, aparentemente, no Pré-Cambriano já havia diversificação e é provável que ela tenha ocorrido concomitantemente à oxigenação dos oceanos. Os geoquímicos, inclusive, estão descobrindo que esse processo foi lento, tendo levado cerca de 100 milhões de anos”, disse.
Ainda não se sabe, no entanto, que pressão disparou a oxigenação. “Independentemente da causa, a oxigenação acabou aumentando os nichos. Os eucariontes se diversificaram e, então, houve maior competição por nichos. Uma das maneiras de resolver a concorrência foi algumas linhagens ficarem maiores, ou seja, multicelulares”, disse Lahr.
Outra contribuição do estudo foi aumentar a compreensão das mudanças climáticas atuais. “Começamos a entender mais profundamente como essa vida microbiana afetou o planeta em diversos aspectos. Nesse período, também ocorreram mudanças climáticas fundamentais, como um dos maiores eventos de glaciação do planeta, a glaciação do Sturtiano, ocorrida há cerca de 717 milhões de anos”, disse.
De acordo com Lahr, essas modificações podem ter tido origens biológicas. “Ao aumentar a resolução sobre como a vida evoluiu em épocas tão remotas, é possível entender um pouco melhor sobre como a vida afeta o clima do planeta ou mesmo outras mudanças geológicas e isso vai nos ajudar a entender o momento de mudanças climáticas que passamos hoje também”, disse.
Na rocha
Além da descoberta de maior diversidade no Pré-Cambriano, outra novidade do estudo foi a reconstrução da morfologia dos ancestrais das teca-amebas, estabelecendo que os microfósseis vasiformes (em inglês vase-shaped microfossils), presentes em diversas regiões do globo, já estavam vivos no Pré-Cambriano, inclusive durante as grandes eras glaciais.
Os microfósseis vasiformes são presumivelmente fósseis de amebas, unicelulares, eucariontes e com esqueleto externo, com grande diversidade documentada do período Neoproterozoico – entre 1 bilhão e 541 milhões de anos atrás e, portanto, no fim do Pré-Cambriano.
“Isso traz uma visão muito diferente sobre como os microrganismos evoluíram no planeta. Apesar de não termos as informações genéticas dos fósseis, é possível obter informação morfológica e de composição, se são orgânicas ou de sílica. Então, é possível fazer comparações sobre o formato e a composição química, que nesse caso estão especialmente preservados, com as teca-amebas atuais reconstituídas pelo big data”, disse Luana Morais, pós-doutoranda com bolsa da FAPESP e uma das autoras do estudo.
Técnicas inovadoras
Além da ausência de registro fóssil com DNA, os pesquisadores também tinham outro problema fundamental para reconstruir a árvore filogenética: o fato de as teca-amebas serem organismos não cultiváveis em laboratório. Essa característica inviabiliza o sequenciamento genético por técnicas convencionais.
Para esse problema, a solução foi adaptar uma técnica de estudo de expressão gênica (transcriptoma) de uma única célula e usá-la para o estudo de filogenética. “Sequenciamos transcriptomas inteiros de amostras vivas de 19 amebas Arcellinida. Isso rendeu alguns milhares de genes e cerca de 100 mil sítios de aminoácido, ou seja, 100 mil pontos de dados que nos dá essa árvore, algo que não tínhamos até então”, disse Lahr.
Com a metodologia baseada no transcriptoma, a equipe conseguiu capturar todos os RNA mensageiros de uma única célula e transformá-los em uma biblioteca de DNA complementar sequenciável.
“Nosso trabalho fundamentalmente se baseia na técnica de transcriptoma de uma única célula, na qual nosso laboratório é um dos pioneiros no mundo. Essa técnica é bastante revolucionária na área, pois permite encontrar uma única ameba [unicelular], isolar essa ameba, limpar e fazer todo o procedimento laboratorial para sequenciar todo o transcriptoma”, disse Lahr.
No estudo, os pesquisadores selecionaram no total 250 genes para construir a árvore filogenética. “Para estudo de expressão gênica, olhar uma única célula não adianta, pois não vai ter resolução suficiente. No entanto, para estudo evolutivo, isso não importa. É preciso obter a sequência e não quantas vezes um gene foi expresso. Por isso, é possível usar essa técnica, originalmente desenvolvida para células tumorais, de forma adaptada. Com a vantagem de a célula de ameba ser muito maior que a de um tumor”, disse.
Antes do desenvolvimento dessa técnica, só era possível sequenciar organismos que podem ser colocados em cultura. “Ela amplia a capacidade de estudo nessa área, pois permite obter informação genética de organismos que eu só encontrei uma vez. Calcula-se que apenas 1% ou menos da biodiversidade seja cultivável”, disse Lahr.
O artigo Phylogenomics and Morphological Reconstruction of Arcellinida Testate Amoebae Highlight Diversity of Microbial Eukaryotes in the Neoproterozoic de Daniel J.G. Lahr, Anush Kosakyan, Enrique Lara, Edward A.D. Mitchell, Luana Morais, Alfredo L. Porfirio-Sousa, Giulia M. Ribeiro, Alexander K. Tice, Tomáš Pánek, Seungho Kang e Matthew W. Brown, pode ser lido em www.cell.com/current-biology/fulltext/S0960-9822(19)30137-X.
Fonte: Agência FAPESP
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