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Imagem do “Catalogue no. 16, spring/summer / R. H. Macy & Co.” (1911) |
Por Amália Safatle
Se alguém perguntasse qual atividade humana causa os maiores impactos socioambientais no mundo, as pessoas facilmente citariam a petrolífera, as obras de infraestrutura e construção civil, a agropecuária convencional, entre outras.
Com uma reputação bem menos pesada, a indústria da moda, no entanto, figura no topo das mais desafiadoras para a agenda da sustentabilidade. Embora seja uma das que mais geram empregos e renda no mundo todo, responde por impactos profundos e difusos em toda a sua extensão, desde a extração de diversas matérias-primas até o descarte, incluindo a forma como é consumida e utilizada, e as condições de trabalho com que é produzida.
Expor às claras para a sociedade tudo o que está por trás da cadeia produtiva da moda é o primeiro passo para buscar melhores práticas. Ao mesmo tempo, este é seu primeiro grande obstáculo, uma vez que a indústria do vestuário soa como algo soft, atraente, colorido, cool.
Pois quem imaginaria que sua calça jeans pode ter percorrido 75 mil quilômetros até chegar ao armário? Que hoje se consomem 400% mais roupas do que 20 anos atrás? Que esse consumo muito além do necessário é acelerado por uma lógica descartável – na qual uma marca como a Zara repõe novas coleções a cada 36 horas em suas lojas no Hemisfério Sul e a cada 24 horas no Hemisfério Norte?
"...quem imaginaria que sua calça jeans pode ter percorrido 75 mil quilômetros até chegar ao armário? Que hoje se consomem 400% mais roupas do que 20 anos atrás? Que esse consumo muito além do necessário é acelerado por uma lógica descartável".
Que, para serem descartáveis, os itens são de baixo preço e qualidade? Que são de baixo preço e qualidade porque, em muitos casos, essa indústria não valoriza o trabalhador que os produziu nem respeita o ambiente de onde seus recursos foram extraídos e onde serão descartados? (saiba mais sobre os
impactos ambientais e sociais da cadeia da moda).
Para entender como essa poderosa e rentável lógica econômica se impôs mundo afora a espalhar o business as usual (o modo convencional de se fazer negócios), vale resgatar a História – não só da moda, mas do conceito de consumo e da própria sustentabilidade.
C
onceito pelo avesso
Podemos entender desenvolvimento sustentável como um modelo que busca conservar e restaurar o ambiente do qual a economia se serve para suprir as necessidades das atuais gerações, sem comprometer o futuro das que ainda virão. Quanto mais durável for um produto e quanto menos energia consumir para atender uma determinada necessidade, mais atributos de sustentabilidade possui.
Sendo assim, a indústria da moda já apresenta de início uma contradição, na medida em que se alimenta da impermanência e da efemeridade – como define o historiador e estilista João Braga, autor de diversos livros sobre o tema. “A moda sempre nega o que está em vigência para apresentar algo novo. É um bem, por natureza, perecível.”
Embora a sociedade de consumo tenha acelerado tais características como nunca, a problemática não vem de hoje. Desde que as vestimentas, além de protegerem o corpo do frio ou do sol, passaram a denotar determinado status social e diferenciação de poder, sendo copiadas por quem aspirava os níveis mais altos na sociedade, os “lançamentos de moda” começaram a se tornar frequentes.
Uma das passagens da História dá conta de que o Ocidente, na época das Cruzadas, ficou encantado com aquilo que viu pela primeira vez no Oriente: tecidos sofisticados, tapetes e tapeçarias cobrindo o chão e as paredes, perfumes em forma líquida. Os cruzados que sobreviveram aos combates e voltaram para casa começaram a trazer as novidades para a nobreza ocidental, despertando interesse por essas mercadorias.
Tinha início, então, o mercantilismo, soprando os primeiros ares do sistema capitalista. Surgia a burguesia, composta de comerciantes que enriqueceram valendo-se dessas transações e formavam os burgos em torno dos feudos.
Com dinheiro, mas sem sangue azul, o burguês procurava ser respeitado na sociedade copiando as vestimentas do nobre – especialmente a partir do declínio do sistema medieval, que impunha leis suntuárias pelas quais era determinado o modo com que cada classe social deveria se vestir.
Assim que era copiada, a nobreza, então, mudava o estilo das roupas, em um processo contínuo de novidade e cópia. “Foi assim que surgiu o prazo de validade na moda. A moda foi, é e será um diferenciador social”, afirma Braga, autor de História da Moda – Uma narrativa(D’Livros Editora).
Com a evolução do capitalismo, todo esse processo foi acelerado, dando origem a uma verdadeira cultura do consumo – e não só consumo de moda, obviamente.
A costura do cool
Nos anos 1960, a primeira geração de fato que nasceu, cresceu e foi educada dentro da lógica do consumo começou a questionar todo o sistema – era a contracultura, que expressou seu protesto pelas artes, pela política e pelo comportamento, inclusive na forma de se vestir.
Mas essa mesma contracultura acabou servindo de fonte na qual o marketing bebeu. A estética hippie foi apropriada pelo mercado, ajudando a dar sangue novo para a publicidade que vivia uma crise de criatividade na época.
A série Mad Men mostra justamente o mundo da publicidade nos anos 1960, quando a moda da calça boca de sino e outros tantos modismos cool da subcultura se massificaram, movimentando a engrenagem consumista. A obra The Conquest of Cool (a conquista daquilo que é descolado), de Thomas Frank, aborda justamente o encontro da contracultura com a cultura de negócios.
É como o sistema funciona, conclui Fontenelle. O raciocínio é: se não se pode vencê-los, junte-se a eles. As novas marcas funcionam como parasitas culturais, sugam o que surge como tendência nas subculturas, espelham-se nelas para criar uma imagem e a jogam no sistema. O artigo “Branding na era da mídia digital”, de Douglas Holt, publicado na Harvard Business Review mostra, passo a passo, como as subculturas se transformam em cultura da multidão (crowd culture).
Primeiro passo: mapeie a ortodoxia cultural (por exemplo, a fast food). Segundo: localize a oportunidade (as disfunções que essa ortodoxia causam, como a má alimentação). Terceiro: centre-se na crowd culture (por exemplo, passe a integrar o movimento crescente que prega a alimentação saudável). Quarto: espalhe a nova ideologia (por meio de uma comunicação viral que impulsione as vendas da nova marca). Foi o que a rede Chipotle Grill fez: colou-se à ideia de comida saudável para conquistar fatia de mercado do McDonald’s, mas usando a mesma lógica do fast food.
Assim como na alimentação, isso tende a ocorrer em qualquer setor, inclusive o de moda. Extrapolando ainda mais, é o risco que corre a própria sustentabilidade – mudar as coisas para mantê-las como são. “A Gro Brundtland [que ajudou a cunhar o conceito de desenvolvimento sustentável], quando veio ao Brasil, já dizia que o termo estava sendo sequestrado pela indústria”, lembra Fontenelle.
Se as propostas que levam a uma transformação da sociedade acabam sendo apropriadas pelo sistema, a saída estaria em mudar o sistema como um todo. Aí é que surgem propostas no sentido de um pós-capitalismo, como a
economia circular e a economia compartilhada. Mas desde que sejam capazes de oferecer maior igualdade de oportunidades e redistribuir poder e renda, amparadas pela busca do bem viver e da satisfação do indivíduo por outras vertentes que não as do consumismo.
Fonte:
Página 22