Arquipélago do Bailique, estado do Amapá — Foto: Amélia Gonzalez/G1 |
Por Amélia Gonzalez
O ano era 2014. O cenário, o Rio Amazonas, com toda sua potência, que muitas vezes mais parece um mar revolto, recebendo já a influência das águas do Atlântico. Viajávamos de volta do Arquipélago do Bailique, onde fui acompanhar, como jornalista, duas etapas de produção do Primeiro Protocolo Comunitário do Brasil, uma exigência da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que trata sobre a participação dos povos indígenas nos caminhos escolhidos pelas comunidades. A viagem é longa, cerca de dez horas de barco, e cansativa. Mas a excitação era tanta, já que o trabalho tinha sido muito bem sucedido, conversávamos todo o caminho.
Quem reconheceu a necessidade de ser feito o Protocolo no Bailique foi o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), uma rede que engloba quase 600 organizações representativas da região, criada logo após a Rio 92. E a conversa, no barco, girava justamente sobre a importância de a sociedade civil ter este olhar, independentemente do estado, para perceber as necessidades e tentar equacioná-las. Falava-se, na verdade, sobre a importância de um trabalho conjunto, em parceria. E, neste quesito, os governos Lula e Dilma recebiam críticas porque abarcaram as questões sociais, tratando de tudo de maneira autoritária, sem deixar espaço para as organizações sem fins lucrativos.
Mas todas as críticas tinham endereço certo, e lá chegavam, de um jeito ou de outro. Às vezes, surtiam efeito. À reunião para a produção do Protocolo compareceram representantes de dois ministérios, além de órgãos públicos que ajudavam a resolver questões severas dos bailiquenses, como os documentos legais para a posse de terra.
O barco avançava rio afora, a noite tinha uma lua estupenda. Alguém puxou o fio da prosa para outras reflexões e, no fim das contas, a conclusão era: ainda bem que são essas as críticas. Poderia ser pior, disse um. “Lembrem-se que nós, as ONGs, só começamos a existir, de alguma forma, aqui no Brasil, depois do fim do regime militar”, alertou outro.
Sim, poderia ser pior.
Lembrei-me dessa conversa quando li, neste fim de semana, que o presidente eleito Jair Bolsonaro quer “combater os entraves” postos pelas ONGs e promete que, assim, pretende alavancar o Brasil. De uma forma ou de outra, as organizações não-governamentais, que já começam a vida com um “não” no título, precisam se esforçar para exercer seu papel principal, que é trazer para a agenda as reivindicações da sociedade civil. Para realizar esta tarefa, sim, em alguns momentos são entraves: ao autoritarismo desmedido; ao pensamento único e exclusivamente voltado ao desenvolvimentismo, levando o lucro a ter mais valor do que as pessoas. Assim é, assim sempre foi e será.
"...o presidente eleito Jair Bolsonaro quer “combater os entraves” postos pelas ONGs e promete que, assim, pretende alavancar o Brasil".
Logo após o fim dos governos militares é que, saudando a democracia, estenderam-se o número de ONGs no Brasil. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), somente em uma década, entre 1996 e 2005, o Brasil viu o número de organizações não governamentais mais que dobrar: de 66,5 organizações para cada cem mil habitantes, pulou para 184,4.
Assim como em todos os setores, aqui também há os maus elementos, organizações criadas com o objetivo de dar lucro a uma só pessoa. Mas não se pode tomar isso como regra, assim como não se deve apostar que todo político ou toda grande empresa têm corrupção no seu sangue. É só fazer o que a velha sabedoria ensina: separar o trigo do joio.
Há que se levar em conta, na história do país, o papel relevante de organizações que provocaram mudanças, sobretudo quando guiadas por mobilizadores sociais capazes de arregimentar atrás de si pessoas que compreendem a importância de “fazer algo além” e que isto não significa, apenas, filantropia.
A Ação da Cidadania, ONG criada pelo sociólogo Betinho nos anos 90, é um exemplo disso. Este ano ela está comemorando 25 anos em que Betinho e Dom Mauro Morelli explicaram, em rede nacional, o Mapa da Fome para os brasileiros. Naquela época, 65 milhões de brasileiros viviam em extrema pobreza e, destes, 32 milhões sequer tinham recursos para comer. O maior impacto viria quando os dois informaram que 4,5 milhões dos famintos estavam nos grandes centros urbanos e 7,2 milhões no Nordeste. O presidente da época, Itamar Franco, decidiu priorizar o tema em sua administração, declarou que o país vivia uma emergência social e deu voz a Betinho, que declarou que uma ação nacional só teria sucesso se contasse com ampla mobilização da sociedade.
Nascia ali a Campanha da Fome. Comitês foram espalhados e o resultado foi muito melhor do que o esperado.
É disso que se está falando. ONGs são parte ativa da sociedade e podem ajudar os governantes a ficarem mais perto dos cidadãos a quem eles representam no sistema democrático como o nosso.
Dei dois exemplos de organizações, mas são inúmeros. As ONGs também preenchem lacunas de pesquisas, se debruçam sobre números e dados para elaborarem relatórios que podem servir como norte para políticas públicas. E, sim, na hora de preservar o meio ambiente contra os excessos cometidos por nós mesmos, elas são importantes sinalizadores. Atacá-las ou privá-las de exercerem este papel é fechar os olhos, definitivamente, para os problemas que já estamos vendo acontecer na natureza. Se não quiserem levar em conta o aquecimento global ou os alertas dos cientistas, foquem então apenas na escassez dos bens naturais.
Fazer contato, abrir-se para um diálogo com movimentos socioambientais é o que se espera de um governo eleito com votos democráticos.
Fonte: G1
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