Muitos macacos tem sido mortos por conta da falsa associação dos animais com a propagação da febre amarela - Guito Moreto / Agência O Globo |
Estratégia visa à preservação de 24 espécies na floresta
SANTA RITA DE IBITIPOCA- A febre amarela dominou as discussões da reunião que levou a Ibitipoca em janeiro 12 dos principais primatologistas do Brasil. Próximo à mata onde vivem os últimos muriquis da região, eles discutiram não só as ameaças a essa espécie, mas a todos os primatas da Mata Atlântica. A meta é lançar em abril o Plano Ação Nacional para a Conservação dos Primatas da Mata Atlântica, um projeto de nome grandioso e objetivo maior. O conceito é o de que os macacos precisam de nós. Mas nós também não podemos ficar sem eles. E eles estão no limite. Para o primatologista Sérgio Lucena, está na hora de as pessoas entenderem que não existe floresta sem os macacos. Sem floresta, não há água, nem regulação do clima e do solo.
Historicamente, os muriquis são mais resistentes à febre, mas os dados do Sossego acenderam o sinal vermelho. Em 2017, morreram 11% dos 350 muriquis da maior população conhecida da espécie, a da RPPN Feliciano Miguel Abdala, em Caratinga (MG), perto do Sossego. A febre amarela é a causa mais provável, diz Karen Strier, presidente da Sociedade Internacional de Primatologia. Professora da Universidade de Wisconsin-Madison (EUA), ela estuda os muriquis do Brasil há 30 anos.
— O muriqui é uma espécie tão preciosa que salvar qualquer indivíduo é importante. Com a experiência perigosa da febre amarela na natureza, temos que aprender a reintroduzir espécies, proteger a floresta e, com ela, as pessoas — diz.
VÁRIAS ESPÉCIES EM RISCO
O plano estabelecerá as estratégias para proteger as 24 espécies de macacos na Mata Atlântica. Fabiano Melo, um dos organizadores da reunião e professor da Universidade Federal de Viçosa, frisa que a febre levou os primatas do bioma ao limite. Ela ataca com ferocidade os bugios, também conhecidos como guaribas ou barbados. Mas a epidemia mata também sauás, macacos-pregos e algumas espécies de saguis. E é apontada como a provável causa para o desaparecimento de muriquis em Caratinga e no Sossego.
Leandro Jerusalinsky, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros, destaca que as prioridades são o muriqui e o barbado-vermelho. Esse último é um dos primatas em maior risco da Terra. Restam 250, segundo as estimativas mais otimistas, e pouco se sabe sobre eles. Estão espalhados em fragmentos de floresta entre Minas e Bahia, dentro da área afetada pela epidemia. Leonardo Neves, que trabalha com o barbado-vermelho no sul da Bahia, lamenta a falta de recursos para estudá-lo e teme que desapareça antes que se possa fazer alguma coisa. Em seu último levantamento, encontrou 80. E o dinheiro acabou antes que localizasse os demais.
Na Mata Atlântica, os primatas perderam 90% de seu habitat, o que os deixa vulneráveis à redução da diversidade genética e dificulta a busca por alimento. No que restou de habitat sofrem pressão da caça. Monica Mascarenhas, do ICMBio, observa que a Mata Atlântica é uma colcha de 250 mil retalhos, a maioria deles com menos de 50 hectares. São milhares de matas como a do Luna, a maioria desertos de bichos cercados por gente.
Fonte: O Globo
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Macaca Esmeralda nas matas de Ibitipoca - Divulgação- Priscila Pereira / Agência O Globo |
Esmeralda deveria formar um trio amoroso com Luna e Bertolino, mas acabou fugindo
POR ANA LUCIA AZEVEDO
SANTA RITA DE IBITIPOCA- Quando Esmeralda chegou, 2017 começava e janeiro pintava a Mata Atlântica mineira com o amarelo dos muricis. E foi do alto dessas árvores que Luna e Bertolino a viram pela primeira vez. Mas os dois, se no alto estavam, no alto ficaram, entre a apreensão e o espanto, como se fitassem uma miragem. Da parte de Esmeralda, foi indiferença à primeira vista. Pouco lhes deu atenção. Enquanto Luna e Bertolino se entreolhavam em ruminações sobre a forasteira, ela saiu para explorar as matas de Ibitipoca, para onde fora levada com a intenção de que se transformasse numa Dona Flor das selvas.
Logo os dias de espera por uma história de poliamor silvestre se tornaram meses. Vez por outra, os três macacos muriquis até trocavam alguns sons, mas a conversa parava aí. Nada de afagos e carinhos. Luna e Bertolino continuavam nos galhos de sempre, a comer folhas de murici, jabuticabinhas-do-mato e pimentinhas. Nas horas mais quentes, dormiam. Já Esmeralda expandia o seu horizonte. Aventurava-se cada vez mais longe do come-e-dorme de seus supostos namorados. Com intrepidez, chegava perto de pessoas e cavalos, pelos quais demonstrava peculiar atração, conta o mateiro José Vicente de Paula, que passou seus 49 anos de vida na região e hoje trabalha para o projeto de proteção da mata e dos muriquis.
— Uma tarde, a Esmeralda desceu de uma árvore e se aproximou do meu cavalo. Ela o acariciou, era como se quisesse se comunicar com ele, e acabou por montá-lo. Era uma macaca diferente. Corajosa — lembra.
Com frequência cada vez maior, Esmeralda deixava a Mata do Luna, em Santa Rita do Ibitipoca, onde Luna e Bertolino nasceram e passaram toda a vida. Ela era a companheira dos sonhos — dos pesquisadores, diga-se — para acabar com a solidão da dupla. Com cerca de dez anos, tinha a idade de uma jovem muriqui casadoira. Demonstrava agilidade e curiosidade de sobra. Era só saúde. Em tese, perfeita não apenas para pôr fim ao celibato de seus pretendidos, mas para ajudar a salvar sua espécie, o muriqui-do-norte, da extinção.
Símbolo da Mata Atlântica, o macaco de cerca de um metro de altura é o maior das Américas. É também um dos 25 mais ameaçados de extinção do planeta e está no caminho da febre amarela. À medida que a doença avança pelo Sudeste, provoca a maior mortandade de primatas de que se tem notícia. Para o primatologista Sérgio Lucena, diretor do Instituto Nacional da Mata Atlântica, trata-se de uma das maiores tragédias da história recente do meio ambiente no Brasil.
FOLHETIM DO MUNDO ANIMAL
Foi necessidade e não romance o argumento para o folhetim do mundo animal protagonizado por Esmeralda. Luna, de 22 anos, e Bertolino, que cientistas estimam ser um pouco mais velho, são os dois últimos muriquis de Ibitipoca, remanescentes de um bando que chegava a 12 macacos. Constituem uma população inviável, que acabará se deixada à própria sorte. Mas inviável é adjetivo que não existe num momento em que a febre amarela extermina os macacos e ameaça os muriquis, que já sofrem com a perda de habitat e a caça ilegal.
À frente do trabalho em Ibitipoca está a primatologista Fernanda Tabacow que, em 2017, viu de perto o que a febre amarela faz por onde passa. Segundo ela, morreram 15 dos 38 muriquis da reserva da Mata do Sossego, entre Simonésia e Manhuaçu, também em Minas. Área-chave para salvar o muriqui-do-norte, o Sossego agora é só preocupação.
A febre levou um perigo a mais para o mundo cada vez menor desses macacos vegetarianos, chamados de hippies pelo temperamento pacífico, a falta de hierarquia nos grupos e a vida sexual animada. As muriquis têm múltiplos parceiros e filhotes de vários pais. Uma fêmea para dois machos não seria problema. Esmeralda, Luna e Bertolino poderiam formar uma família e ajudar a salvar a espécie, pensavam os primatologistas.
Esmeralda entrou na vida de Luna e Bertolino por acaso. Em meados de 2016, quando a febre amarela já matava macacos em Minas Gerais, o grupo integrado por Fernanda soube da existência de uma muriqui solitária na localidade de Esmeralda de Ferros, a 270 quilômetros de Ibitipoca. Viram nela a companheira ideal para Luna e Bertolino, este último batizado em homenagem a Seu Chico Bertolino, morador já falecido de uma das únicas casas próximas à Mata do Luna e que amava e protegia os muriquis.
A muriqui foi capturada e batizada Esmeralda. Em janeiro de 2017, chegava à sua nova casa. Veio num avião só para ela, com a ajuda do projeto nacional de preservação dos muriquis e de apoiadores, como a Reserva de Ibitipoca e a Fundação Boticário. Foi colocada numa área preparada, numa trilha no início da Mata do Luna, onde começaria uma nova etapa de sua vida.
Na sociedade dos muriquis são as fêmeas que migram em busca de companheiros e se aventuram a formar novos bandos. Os machos passam a vida toda na floresta onde nasceram. No caso da Mata do Luna, de cerca de 40 hectares, significa uma vida limitada. Ela é uma ilha de floresta cercada por áreas com algum tipo de ocupação, como plantações e pastagens. Tem menos de um terço do tamanho do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, ou do Jardim Botânico do Rio, por exemplo. Sem uma companheira, Luna e Bertolino são um fim de linha, condenados pela solidão.
Assistir ao vivo um folhetim animal é para os fortes. Os pesquisadores acompanharam a tentativa de namoro a três com atenção e sacrifício. Observar muriquis implica em passar o dia a subir e descer morros íngremes, se esgueirar pela vegetação fechada sob calor e nuvens de mosquitos, explica Priscila Pereira, também primatologista e integrante do projeto.
A INDEPENDÊNCIA DE ESMERALDA
Dia após dia ficava claro que a escalação de elenco não se encaixava no roteiro dos cientistas. Luna e Bertolino só pensavam em comer e dormir; Esmeralda, em se aventurar. Priscila diz que em meados do ano passado ela se mudou para a região das cachoeiras, fora da Mata do Luna. Talvez por saudade da terra natal — Esmeralda de Ferros é repleta de quedas d’água.
Esmeralda foi para as bandas da Janela do Céu, a mais famosa cachoeira de Ibitipoca. Montanhoso, o lugar representa um paraíso para turistas em busca de selfies, mas é um inferno para quem precisa andar atrás de macaco. Ficava cada vez mais difícil saber onde a muriqui estava. Esmeralda gostava de cavalos e de gente, mas não de Luna e Bertolino. Ela não era Dona Flor para querer dois maridos. Entre o poliamor e a independência, ficou com a segunda opção. Esse não foi um amor de verão, tampouco de outono ou inverno. E Esmeralda se foi com a primavera. Há três meses foi dada como perdida, embora exista reduzida chance de que seja encontrada. Quando janeiro de 2018 chegou, um ano após a breve passagem de Esmeralda, Luna e Bertolino continuavam a levar sua vida na copa dos muricis sobre o chão coberto do branco das flores do ipê. Esquecidos do que aconteceu no verão passado.
Mas os cientistas não desistiram. Buscam outra companheira e uma área mais segura para os machos. Em Ibitipoca continua a se desenrolar uma missão contra o tempo e o vírus para salvar os muriquis, um microcosmo da batalha contra a extinção na Mata Atlântica. Quanto a Esmeralda, resta apenas a incerteza, pondera Fernanda:
— Não sabemos se ela morreu, foi caçada ou se está por aí. De certo, é que escolheu a independência. Esmeralda era feliz.
Fonte: O Globo
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