quarta-feira, 4 de janeiro de 2012
Lars Grael: a primeira entrevista do MemoriaOlimpica.com em 2012
Lars Grael (Iatismo)
Por Nayara Barreto e Thyago Mathias
Site do atleta: http://larsgrael.com.br/
"Jamais desistir"
“No Brasil, durante muitos anos, a educação se divorciou do esporte, a educação física perdeu importância e relevância nas escolas de todo o território nacional, o reconhecimento do esporte como vetor de socialização se perdeu e foi nesse sentido que os atletas e ex-atletas começaram a atuar, nesse vácuo deixado pelo estado.”
“É importante valorizar a educação física e o esporte na escola. Essa deveria ser uma estratégia prioritária nas políticas educacionais brasileiras, mas o que vemos hoje é o caminho inverso.”
“O correto é que a Anvisa estivesse alinhada com o laboratório de prevenção ao doping no Brasil. Todo e qualquer medicamento que tivesse substância dopante deveria apresentar esta informação em sua própria caixa.”
Medalhista de bronze na classe Tornado da vela brasileira, nos Jogos Olímpicos de Seul (1988) e de Atlanta (1996), Lars Grael entrega sua vida ao esporte. Mesmo depois do acidente, na cidade de Vitória, em 1998, em que a hélice de um barco acabou mutilando uma de suas pernas, ele não desistiu. Dedicou-se à gestão pública do esporte no país e desenvolveu um projeto social que já levou lições de vela e de educação ambiental a mais de 10 mil estudantes de escolas públicas.
Hoje, decacampeão brasileiro e pentacampeão sul-americano da Tornado, Lars Grael permanece competindo em busca de medalhas e experiências de superação.
Memória Olímpica: Você vem de uma família de esportistas e seus tios foram os primeiros brasileiros a vencer um mundial de iatismo. Como foi crescer nessa cultura do iatismo e do esporte? Conte pouco de como se transmitia essa tradição em sua família.
Lars Grael: A influência foi muito presente. Esse estímulo pela cultura da vela vem do meu lado materno, pelo meu avô, que era dinamarquês. Ele chegou ao Brasil em 1924, se encantou com o país e acabou ficando. Trouxe essa cultura do povo escandinavo, que tem uma intimidade com o mar e a navegação. Meu avô foi um dos precursores da vela de competição em nosso país. Não tinha como não ser altamente influenciado por essa cultura familiar imersa na vela. Minha mãe e meus tios receberam essa bagagem de cultura náutica e de paixão pelo mar, velejaram muito e passaram essa paixão para os filhos. Para as gerações seguintes da família, meus tios se tornaram referência de competência e de orgulho. Era muito emocionante vê-los nos uniformes do Comitê Olímpico Brasileiro (COB). Por meio deles e do nosso avô, recebemos essa bagagem e também, claro, o espírito olímpico.
MO: E a influência de seu irmão Torben e Ingrid em sua carreira?
LG: Muitas pessoas influenciaram minha carreira na vela. Pessoas como meus tios e meu avô, como já citei, e também minha mãe. Embora não tenha sido uma velejadora de competição, ela incorporava toda a cultura náutica da família e sempre incentivou a prática da vela. Também meu pai, que não tinha nada a ver com a vela, sempre estimulava o nosso esforço na prática do esporte. Todas essas pessoas me deram amplas noções de disciplina, treinamento, seriedade e espírito patriótico. Sem dúvida, a família é muito importante para o desenvolvimento de um atleta, são as pessoas que estão mais próximas e podem incentivar de uma maneira mais presente. Por isso, meus irmãos foram grandes figuras em minha carreira. O Torben, por ser três anos mais velho, sempre foi, pra mim e para toda a vela brasileira, uma grande referência de paixão, competência e vocação pelo esporte, ele dedicou toda uma vida em função do esporte, e se tornou um grande ídolo e atleta em quem me espelhar.
MO: Além das duas medalhas de bronze, em Seul 1988 e Atlanta 1996, você ainda foi pentacampeão sul-americano e 18 vezes campeão brasileiro. Qual a importância de se realizar competições nacionais?
LG: Para um atleta olímpico, é importante que exista um calendário esportivo em seu próprio país. Muitas vezes isso não acontece aqui. É interessante que exista sempre um calendário esportivo nacional que permita ao atleta se desenvolver dentro da técnica mais avançada e em um nível de competitividade em que ele encontre rivalidade, desafios... também deve fazer com que o atleta defina metas em seus anos de treinamento para grandes eventos. O que acontece muitas vezes é o atleta precisar sair do Brasil para competir no cenário norte-americano ou europeu. No caso da vela, há algum tempo, as competições nacionais eram muito mais raras. Então, muitas vezes íamos para competições no exterior e nossa preparação não estava tão boa quanto a dos competidores estrangeiros, pois não se aprimorava técnica nem se incentivava muito o esporte no país. Era muito difícil persistir em um sonho olímpico em um país que não tinha tradição nesse esporte. Por isso, é muito importante que se tenha hoje o campeonatos e que os patrocinadores também incentivem mais os atletas e que possam dar uma estrutura mínima de apoio. Hoje, o cenário do incentivo e das competições nacionais melhorou muito. O esporte olímpico ganhou mais importância, o Comitê Olímpico Brasileiro é muito mais estruturado e o Brasil aprovou leis de incentivo ao esporte. Todos esses instrumentos ajudaram muito o país a sair dessa monocultura esportiva que é o futebol e diversificar mais as práticas. Houve, sem dúvida, um avanço. Hoje o esporte olímpico proporciona muito mais condições aos atletas e ao país, isso faz com que as competições nacionais aconteçam e sejam valorizadas mesmo dentro do Brasil. Além disso, hoje existem mecanismos de incentivos fiscais. Assim, o estado passou a ser parceiro dessa iniciativa através de renúncia fiscal, mas ainda não é fácil para um talento do esporte brasileiro conseguir patrocínio e se aprimorar em competições internas.
MO: Você também representou o Brasil nos Jogos Olímpicos de Los Angeles 1984 e Barcelona 1992. Como foi a sua experiência em cada olimpíada?
LG: Para quem vive do esporte ou para quem sonha viver do esporte, os Jogos Olímpicos representam o maior evento da humanidade, é aonde todo atleta olímpico quer chegar. Só o fato de conquistar uma vaga olímpica é uma vitória e motivo de grande exaltação, é o maior êxito de um atleta. No meu caso, era quase uma utopia chegar aos Jogos Olímpicos, pois não tínhamos o dinheiro de família para comprar barco, não tínhamos patrocínio e quando eu e Torben tentamos trazer patrocínio para a vela, fomos massacrados e acusados de estarmos poluindo uma vela sagrada, brandindo no barco a marca de uma empresa. Toda essa situação era muito difícil, mas hoje isso mudou. Ter um patrocínio no barco é normal e essencial, mas naquela época era muito difícil. Isso fazia com que a conquista de uma vaga olímpica fosse mais importante e valiosa. Fiz a minha campanha olímpica com muito esforço e dificuldade, sempre pelo Brasil, meu país. Mesmo o caminho sendo árduo, defendi a pátria e nossa bandeira. Cheguei `a Olimpíada sempre com muita vontade de representar o país. Em Barcelona, especialmente, esperávamos muito, mas infelizmente não tivemos resultado e isso nos abalou bastante. Após essa Olimpíada, tivemos uma grande depressão e foi difícil voltar. Mesmo assim, nos Jogos seguintes tivemos um apoio muito importante da Confederação Brasileira de Vela e Motor (CBVM) e de três patrocinadores que acreditaram na nossa trajetória. E assim a vela do Brasil deu a volta por cima e conquistou em Atlanta o título do país número um da vela mundial. Foram experiências fantásticas como atleta e também como brasileiro.
MO: Em fevereiro de 2009, após 11 anos, você voltou a integrar a equipe permanente de Vela Olímpica ao conquistar a Semana Pré Olímpica, em Porto Alegre. Em 2010, chegou a ocupar a quarta colocação do ranking internacional da classe Star da Federação Internacional de Vela. Como foi voltar ao esporte depois de tanto tempo?
LG: De fato nunca parei de velejar, apesar de ter me afastado das competições maiores em alto nível, mas o acidente aconteceu em 1998 e, no mesmo ano, já estava de volta à minha primeira regata. No entanto, a partir dessa época, praticava vela no tempo que me sobrava, pois havia assumido compromissos públicos no governo federal e no estado de São Paulo. Apesar disso, nunca perdi de vista a vontade de competir mais intensamente. Assim que me desvinculei dos compromissos públicos, voltei à vela de competição e, em 2009, fui medalha de bronze do campeonato da classe Star na Suécia e passei a participar de várias outras competições. Mas ter voltado à equipe permanente, sem dúvida, foi uma satisfação ainda maior depois de tanto tempo, pois para mim, como atleta e como brasileiro, é muito importante integrar a equipe e poder representar o país juntamente com outros grandes velejadores.
MO: Como atleta, você também sempre se preocupou com questões sociais. Você pode falar um pouco do papel social do esporte?
LG: O papel social do esporte é muito grande, pois hoje é notável ver que atletas de altíssimo rendimento que conquistaram títulos mundiais estão se dedicando à democratização do esporte. Eles têm uma consciência sócio-educacional mais intensa do que o próprio estado, pois esses atletas tentam preencher um espaço que deveria ser dever de todo e qualquer governo e direito do cidadão. No Brasil, durante muitos anos, a educação se divorciou do esporte, a educação física perdeu importância e relevância nas escolas de todo o território nacional, o reconhecimento do esporte como vetor de socialização se perdeu e foi nesse sentido que os atletas e ex-atletas começaram a atuar, nesse vácuo deixado pelo estado. Esses projetos são extremamente importantes, embora seja lamentável que o estado não atue de forma tão veemente. Mas é louvável que os atletas de alto rendimento busquem democratizar o esporte por meio de iniciativas próprias.
MO: Como surgiu a vontade e a oportunidade de criar, em Niterói (RJ), um projeto social que serviu de base para muitos outros que existem em todo o país, o Projeto Grael? Pode falar um pouco desse projeto?
LG: Em 1996, tive a honra de poder ser um dos precursores de projetos sociais ao criar o projeto Grael, em Niterói. O projeto leva educação ambiental e ensino da vela para milhares de crianças e adolescentes da rede pública. Começamos a atuar afetivamente com aulas em junho de 1998 e mais de 10 mil jovens passaram por lá. Além disso, demos suporte a outros núcleos do projeto como em Vitória e Maricá (RJ), hoje temos nosso núcleo consolidado em Niterói e outro em pleno funcionamento em Três Marias (MG). Essa iniciativa de tentar fazer a deselitização de nosso esporte é realmente essencial para conferir à prática esportiva seu real papel social.
MO: E qual a importância do esporte na vida de uma criança e um adolescente?
LG: O esporte é fundamental na vida dos jovens, principalmente no aspecto da saúde preventiva, para que o jovem tenha um crescimento físico saudável e para que ele possa ter um trabalho de manutenção de sua saúde. É importante, nesse sentido, valorizar a educação física e o esporte na escola. Essa deveria ser uma estratégia prioritária nas políticas educacionais brasileiras, mas o que vemos hoje é o caminho inverso. O esporte também é muito importante para que o jovem tenha referências positivas em sua vida, que tenha heróis nacionais com valores olímpicos e que esses heróis possam ser verdadeiros espelhos para ensinarem aos jovens o espírito patriótico e o espírito do olimpismo. Além disso, o esporte ensina ética e moral, pois os valores olímpicos são valores universais, através dos quais os jovens podem ter noção de coletividade, espírito de equipe e disciplina e jamais ter a soberba de ser um vencedor e humilhar o adversário, saber perder e aprender com uma derrota. Esporte então é exercitar uma filosofia de vida.
MO: Você integrou os quadros dirigentes do Instituto de Desenvolvimento do Desporto (Indesp), foi secretário Nacional de Esportes no governo FHC e assumiu a Secretaria Estadual da Juventude, Esporte e Lazer de São Paulo. Como avalia sua experiência política na área dos esportes e enxerga o cenário de incentivo ao esporte em nosso país?
LG: Acho importante todos nós termos essa consciência de contribuir para o esporte. Sempre me envolvi com esta questão. Já fui presidente do conselho, diretor da Federação de Vela do Rio de Janeiro, ocupava cargos na comissão de meio ambiente do Comitê Olímpico Brasileiro e, assim, sempre me envolvia em proporcionar visibilidade e qualidade à prática esportiva. Os oito anos que passei ocupando cargos de gestão esportiva foram muito importantes para que eu pudesse ter outra visão da gestão esportiva, complementar minha visão de atleta com a visão de quem dirige um projeto social esportivo. Foram experiências muito válidas nas quais pude ver o esporte a partir de vários prismas.
MO: Você, sem dúvida, é um exemplo de superação. Poderia falar um pouco como foi o seu processo de recuperação e quais foram as maiores dificuldades?
LG: Sem dúvida, foi um momento de aprimoramento na minha vida. Encontrei uma nova razão para viver e dar a volta por cima. Isso, foi o esporte que proporcionou naquele momento, o esporte e todo o apoio da família e dos amigos que recebi. Voltar a velejar e voltar a competir fez com que eu me sentisse útil ao país. O povo brasileiro também foi essencial naquele momento, pois todos manifestaram grande solidariedade, me apoiaram e torceram muito, demonstrando apreço, carinho, fé... e isso me fez buscar forças sempre para vencer.
MO: Você foi Membro do Conselho Fundador da WADA – Agência Antidoping Mundial e recebeu o prêmio de Ética no Esporte Comitê Olímpico Internacional (COI). Como você vê a questão do doping nos esportes?
LG: O doping é um flagelo do esporte. À medida que o esporte se profissionalizou, atletas buscaram um aprimoramento físico e esportivo a qualquer custo. Isso acabou ultrapassando a fronteira da ética. Quando começaram as primeiras avaliações de doping, eram punidos atletas que faziam a ingestão de álcool. Depois, esse cenário foi se agravando e passaram a punir atletas que usavam substâncias para terem vantagens técnicas. O grande problema é que a tecnologia do doping foi muito mais veloz do que a tecnologia de prevenção ao doping. Hoje, as políticas de prevenção ao doping estão muito mais presentes, sem dúvida, mas é realmente lamentável que tenhamos ainda tantos casos. A grande luta é para evitar que isso macule de alguma forma o esporte, pois o esporte é saúde e o doping muitas vezes leva o atleta a colocar sua saúde física e mental em risco.
MO: Com tantos casos de doping, quais as medidas que ainda devem ser tomadas na luta pela prevenção?
LG: Não é uma situação fácil, pois o correto é que a Anvisa estivesse alinhada com o laboratório de prevenção ao doping no Brasil. Todo e qualquer medicamento que tivesse substância dopante deveria apresentar esta informação em sua própria caixa. Muitas vezes, o atleta vê uma lista de substâncias proibidas e não sabe identificar muito bem o quem tem em mãos e o que está ingerindo. O atleta tem dificuldade de ler uma bula e ver a composição química e supor se aquilo pode prejudicá-lo ou não, assim ele tem dificuldade de detectar se aquele remédio será ou não considerado doping. Muitos atletas são induzidos ao erro e acabam sendo punidos sem ter a intenção de usar uma substância dopante. Então essa medida, de identificar na própria caixa do remédio se aquele medicamente é dopante ou não, poderia ajudar muito no combate. Além disso, deveria haver uma participação maior dos órgãos oficiais brasileiros na conscientização dos atletas.
Fonte: Memória Olímpica
Veja também a entrevista de Torben Grael para o site MemoriaOlimpica.com aqui.
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