Célebre personagem da mitologia grega, Sísifo era descrito por Homero como o mais sábio e prudente dos mortais, embora afeito a trapaças. Depois de enganar a morte em duas ocasiões e perecer de velhice, recebeu uma exemplar punição dos deuses por sua rebeldia. Por toda a eternidade, teria de rolar incessantemente enorme rochedo até o cimo de uma montanha, de onde a pedra despencaria novamente pela irresistível força de seu peso. Em ensaio publicado em 1941, Albert Camus apresenta o mito como metáfora do trabalho inútil e sem esperança da vida moderna.
“O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas e esse destino não é menos absurdo. Mas ele só é trágico nos raros momentos em que se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua condição miserável: é nela que ele pensa enquanto desce”, observa o escritor franco-argelino.
Recentemente, a alegoria tem sido revisitada pela comunidade científica para ilustrar o descomunal esforço de manter de pé as atividades de pesquisa no Brasil em meio à asfixia financeira imposta pelo governo federal.
A situação realmente beira o absurdo. Após três anos seguidos de cortes e contingenciamentos, o orçamento total do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) passou de 15,6 bilhões de reais, no ano passado, para 12,7 bilhões em 2018, uma redução de 18,6%.
Quando se analisam apenas os recursos disponíveis para investimento e custeio da área científica, o cenário é ainda mais desalentador, observa Ildeu de Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Dos 4,6 bilhões de reais previstos, cerca de 10% foram contingenciados pela equipe econômica do governo no início do ano. “Os recursos disponíveis são 25% menores do que o orçamento reservado para 2017 e correspondem a menos da metade do que chegou a ser aplicado cinco anos atrás”, diz.
Não que sobrasse dinheiro antes. Há tempos, os gastos brasileiros em Pesquisa e Desenvolvimento têm se mantido no mesmo patamar, em torno de 1,2% do PIB, muito abaixo dos países desenvolvidos e até mesmo de nações emergentes, como China e Coreia do Sul, que aplicam 2,1% e 4,2%, respectivamente.
“Quando a economia passou a crescer em ritmo menor, os chineses aumentaram os investimentos em Ciência e Tecnologia, exatamente para dar suporte ao desenvolvimento local. O Brasil faz o inverso. Em meio à crise, promove um desmonte sem precedentes na área”, lamenta Moreira. “Com a Emenda Constitucional 95, que congelou as despesas públicas por 20 anos, vivemos uma verdadeira tragédia. O país pode ficar aprisionado em um patamar de investimentos baixíssimo até 2037.”
O governo está ciente da ameaça. “Para o orçamento de 2018 foi encaminhado algo que será impossível de atender”, queixou-se o ministro Gilberto Kassab no fim do ano passado, quando ainda negociava um repasse maior à sua pasta.
Em 9 de maio, durante uma audiência pública na Câmara, seu secretário-executivo, Elton Zacarias, admitiu que os recursos disponíveis representam menos da metade do que havia em 2013. “O Ministério vem sofrendo uma redução orçamentária bastante grande e a perspectiva para os próximos anos é que a situação piore, devido à PEC do Teto”, disse aos deputados.
A armadilha foi criada, porém, pela equipe econômica de Michel Temer, que vendeu o congelamento dos gastos públicos como solução mágica para a crise fiscal.
Os resultados dessa política de desmonte ficam cada vez mais evidentes. No fim de 2017, Ricardo Galvão [membro titular da ABC], diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), alertava para a ameaça de suspensão das atividades de controle do desmatamento na Amazônia, que dependem da compra de imagens de satélites estrangeiros, após ver o orçamento da instituição despencar 40%.
No fim de março, cientistas do Programa Antártico Brasileiro (Proantar), criado em 1982 para desenvolver pesquisas nas áreas de oceanografia, biologia, glaciologia e meteorologia, alertaram ao ministro Kassab que a nova estação brasileira no continente, erguida a um custo de 330 milhões de reais, corria risco de ser inaugurada sem equipamentos e pesquisadores. O último edital federal, no valor de 14 milhões de reais, foi lançado em 2013 e financiou 19 projetos por três anos, mas o dinheiro acabou.
As agências de fomento à pesquisa também passam por enorme dificuldade. Com o fim do programa Ciência Sem Fronteiras, o número de beneficiários de bolsas no exterior financiadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) despencou de 18,4 mil, em 2014, para 1,9 mil no ano passado.
No mesmo período, o investimento em “apoio à pesquisa”, relacionado aos editais para financiar projetos específicos, caiu de 631,6 milhões de reais para pouco mais de 1 milhão. Somente as despesas com bolsas no Brasil tiveram uma queda menor, passando de 1,34 bilhão de reais para 1,12 bilhão.
“Fizemos um grande esforço para não cortar bolsas para a pós-graduação, mas a demanda segue reprimida. Atualmente, atendemos perto de 15% dos pedidos de bolsa no País e menos de 5% para estudos no exterior”, lamenta Marcelo Marcos Moraes, diretor do CNPq. Além do orçamento exíguo, ele se queixa do contingenciamento de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), abastecido com tributos e contribuições de empresas.
“Da arrecadação de 4,5 bilhões de reais prevista para este ano, teremos pouco mais de 1 bilhão para trabalhar, um valor a ser repartido entre o CNPq e a Finep (financiadora de projetos ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia). O restante está bloqueado pelo governo e, se não for utilizado até o fim do ano, será apropriado pelo Tesouro.”
Para crescer, a China ampliou o investimento em Ciência. ’O Brasil faz o inverso’, lamenta Moreira, da SBPC.
Se a situação do CNPq inspira grande preocupação, a de algumas agências de fomento estaduais beira o desespero. Em meio a uma das mais graves crises fiscais de sua história, o estado do Rio de Janeiro deixou de repassar, em quatro anos, 667 milhões de reais para a Faperj, segundo Jerson Lima Silva [membro titular da ABC], ex-diretor científico da entidade. A falta de recursos gerou atraso no pagamento de bolsistas por quatro meses, além do sucateamento de laboratórios.
De acordo com o reitor da UFRJ, Roberto Leher, a crise das agências de fomento causa um duplo prejuízo às universidades públicas. “Muitos projetos têm sido reduzidos em seu escopo ou mesmo suspensos. Além de prejudicar o avanço do conhecimento científico, isso também compromete a formação de nossos graduandos, mestrandos e doutorandos, pois estão sendo privados da vivência em um ambiente de pesquisa”, explica. “Infelizmente, não temos condições de complementar esses recursos. A UFRJ deve fechar o ano com um déficit de 160 milhões de reais.”
Vice-diretor do Instituto de Bioquímica Médica da universidade, Fábio Almeida oferece um exemplo didático de como a interrupção de investimentos gera desperdícios. Em 2013, a universidade adquiriu um espectrômetro de 900 megahertz para equipar o Centro Nacional de Ressonância Magnética Nuclear. Instalado no ano passado, o equipamento de 15 milhões de reais, o maior da América Latina, pode reduzir pela metade o tempo de pesquisas básicas que dão suporte ao desenvolvimento de novos remédios e terapias.
“Esse aparelho é muito utilizado, mas poderia amparar pesquisas mais complexas e ousadas, a exemplo de um projeto aprovado pela Faperj em 2014, ao custo total de 1,3 milhão de reais, que tinha por objetivo estudar as estruturas de proteínas dos vírus da zika, da dengue e do bacilo da tuberculose, além de criar uma plataforma de triagem de fármacos, capaz de aproximar a indústria farmacêutica nacional da universidade”, afirma. “A Faperj não conseguiu honrar o compromisso. Tivemos de adaptar o projeto e nos contentar com metas menos ambiciosas.”
Diante do quadro de penúria, as entidades científicas seguem mobilizadas na luta para ampliar os recursos disponíveis para a Ciência e Tecnologia. “Além de manter a pressão sobre o Congresso e o governo, vamos realizar oito seminários temáticos pelo país até junho para propor políticas públicas aos candidatos do Executivo e do Legislativo”, diz Moreira da SBPC.
Uma das propostas que unem boa parte da comunidade científica é um projeto de lei para transformar o FNDCT em um fundo financeiro, de forma a impedir que tenha recursos contingenciados pelo governo ou apropriados pelo Tesouro. “Já existe uma proposta nessa linha em tramitação no Senado. Somente com essa mudança, seriam liberados cerca de 3 bilhões de reais para pesquisas”, emenda Moraes, do CNPq.
(Rodrigo Martins para Carta Capital, 28/5)
Fonte: Academia Brasileira de Ciências
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