segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Míriam Leitão: "O Congresso não derrotou o governo. Derrotou o país"

Sessão do Congresso Nacional que analisou vetos de Lula — Foto: Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados

Na semana em que o Brasil puniu golpistas pela primeira vez, parlamentares impõem um retrocessos brutal, com ameaças ao meio ambiente

Por Míriam Leitão

A democracia brasileira não permite descanso. Na mesma semana em que o Brasil atravessou uma fronteira histórica para fortalecer os pilares do regime das liberdades, o Congresso humilha o país mostrando que é capaz de tudo para atender a interesses menores. Não foi o governo que o Congresso derrotou com suas pautas-bomba e destruição das leis de proteção ambiental e do patrimônio histórico. Foi o país.

O Brasil nunca havia punido golpistas. Passou toda a história republicana assombrado por golpes, tentativas de golpes, quarteladas e pela ideia dos militares de que lhes cabia tutelar o poder civil. Prender generais e um ex-presidente condenados após o devido processo legal por tentativa de golpe é um passo gigante. Os que têm a democracia como valor supremo poderiam, quem sabe, depois disso, descansar um pouco da grande batalha.

Foi doloroso atravessar o tempo em que Jair Bolsonaro e seus ajudantes civis e militares diuturnamente atentaram contra a democracia. Nós que vivemos os dolorosos 21 anos de ditadura sabíamos o risco que o país corria a cada dia, entendíamos todos os gestos da conspiração, ouvimos todas as ameaças. Vivemos quatro anos a iminência de nova tragédia cívica.

A prisão inédita na História de generais, almirante e ex-presidente não pode ser vista como um acerto de contas com o passado, tem que ser um pacto com o futuro. É a chance do fim do golpismo crônico, um acordo entre dessemelhantes em torno de princípios comuns. A democracia é assim. A concordância tem que ser sobre valores republicanos, mas não a imposição do pensamento único. É bem-vinda a discordância.

Discordar não é usar o Parlamento como vingança, alegando estar em briga com o governo para ferir o país, seu patrimônio e sua chance de futuro. O PL da Devastação que o Congresso restabeleceu, ao derrubar os vetos do presidente Lula, é um retrocesso brutal. É a demolição de leis, normas, limites criados em décadas de esforço. É colocar em risco preciosidades.

O governo errou no varejo. O Congresso erra no atacado. Lula tem a prerrogativa de indicar o nome de ministros do STF. Portanto, não tinha mesmo que se curvar à vontade do senador Davi Alcolumbre. Mas deveria ter feito diferente. Perto do recesso do Judiciário, o governo poderia ter deixado a nomeação de Jorge Messias para o ano que vem. E em qualquer tempo de sua escolha deveria ter comunicado ao senador antes de tornar a decisão pública. Na Câmara, poderia ter agido com mais temperança e estratégia diante do risco da desfiguração, com propósitos político-eleitorais, do projeto antifacção. Aliás, o próprio envio do projeto é discutível. Mais eficientes contra o crime têm sido as operações de inteligência financeira como a Carbono Oculto.

O governo errou nos modos, o Congresso errou o alvo. Não foi por estar “de mal” com o Executivo que o Congresso fez o que fez. É o que ele quis fazer desde sempre. Há muito tempo, grupos de parlamentares, lobbies do agronegócio e de empreiteiros querem demolir as leis ambientais do país. Há anos conspiram. O conflito com o governo foi pretexto. É oportunismo. A votação dos vetos estava marcada quando houve a reação à PEC da Blindagem. Eles recuaram, temendo a impopularidade. Depois decidiram esperar a COP. Não foi resposta na briga com o Executivo. Foi crime premeditado.

Estamos agora andando sobre os escombros do edifício de proteção construído com zelo e luta. Tudo está em risco. A Sociedade de Arqueologia Brasileira alerta que todos os sítios arqueológicos do país estão correndo perigo de serem destruídos antes de serem descobertos. Empreendedores podem iniciar a maioria das obras sem qualquer licenciamento. Não precisam ouvir o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Se a lei valesse em 2011, não teríamos preservado o Cais do Valongo.

A partir de agora se um grileiro declarar um Cadastro Ambiental Rural em terra pública, pode fazer qualquer coisa, e não precisa esperar a validação por órgãos ambientais. A preciosa e frágil Mata Atlântica poderá ter vegetação suprimida. Perdeu a blindagem. Obras em terras indígenas ainda não homologadas podem ser iniciadas sem ouvir os indígenas. Pareceres do Ibama, ICMBio e Funai tornaram-se facultativos. Estados e municípios podem fazer suas normas ambientais ignorando leis federais.

É um erro dizer que o Congresso derrotou o governo. Ele atirou na democracia.


(Com Ana Carolina Diniz)

Fonte: O Globo. Coluna da Míriam Leitão





Quase a metade dos ambientes aquáticos do mundo está gravemente contaminada por lixo

 

O Brasil se destaca no esforço de monitoramento, liderando o número de registros, mas isso não garante que os ambientes monitorados estejam limpos (imagem: Naja Bertolt Jensen/Unsplash)

Estudo de pesquisadores da Unifesp sintetizou dados de 6.049 registros de contaminação em todos os continentes ao longo da última década

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – “Sujos” ou “extremamente sujos”: estas são as classificações de 46% dos ambientes aquáticos do mundo. A conclusão é de um levantamento que compilou e sistematizou dados de 6.049 registros de contaminação por lixo em ambientes aquáticos de todos os continentes ao longo da última década.

Coordenado pelo pesquisador Ítalo Braga de Castro e liderado pelo doutorando Victor Vasques Ribeiro, do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (IMar-Unifesp), o estudo analisou artigos publicados entre 2013 e 2023 e calculou o nível de limpeza de rios, estuários, praias e manguezais com base no Clean-Coast Index (CCI), uma métrica internacional que quantifica a densidade de resíduos sólidos em ambientes costeiros. Os resultados foram publicados no Journal of Hazardous Materials.

O estudo apontou que há uma distribuição desigual do esforço de monitoramento. Nesse cenário, o Brasil se destaca, liderando o número de registros no período. “Mas isso não garante que os ambientes monitorados apresentem boas condições e estejam limpos. Os resultados mostram que cerca de 30% dos ambientes costeiros brasileiros foram considerados sujos ou extremamente sujos de acordo com a escala CCI”, diz Castro.

Um dos casos mais críticos de contaminação se encontra em território brasileiro, e muito próximo da cidade de São Paulo, nos manguezais de Santos, que figuram entre os pontos mais contaminados do planeta.

A síntese mundial produzida pela equipe mostrou uma homogeneidade surpreendente na composição do lixo, independentemente de diferenças culturais, econômicas ou geográficas. Plásticos e bitucas de cigarro correspondem a quase 80% dos resíduos encontrados globalmente. “São raríssimos os locais totalmente livres de lixo”, comenta o pesquisador.

Os plásticos representam 68% dos itens registrados. Seu predomínio é potencializado pela persistência no meio ambiente, pela fragmentação em micro e nanoplásticos e pelo transporte por correntes oceânicas a grandes distâncias. As bitucas, responsáveis por 11% dos resíduos, liberam mais de 150 substâncias tóxicas que podem ser muito prejudiciais aos organismos aquáticos.

O estudo confirmou, com dados quantitativos, o papel positivo desempenhado pelas áreas de proteção ambiental. “Analisamos 445 áreas protegidas em 52 países. A conclusão é inequívoca: a proteção reduz a contaminação em até sete vezes. Cerca de metade das áreas protegidas investigadas foi classificada como ‘limpa’ ou ‘muito limpa’. Mesmo assim, a proteção não é garantia de imunidade frente à crescente pressão humana. Cerca de 31% das áreas protegidas foram classificadas como ‘sujas’ ou ‘extremamente sujas’, mostrando que não estão efetivamente imunes à contaminação por lixo no mar”, pondera Danilo Freitas Rangel, mestrando do IMar-Unifesp que participou da equipe de pesquisadores.

Um resultado mais sofisticado do trabalho é o chamado “efeito de borda” nas fronteiras das unidades de conservação. A equipe calculou a distância de cada ponto de amostragem até os limites das áreas protegidas, identificando um padrão: o lixo se acumula principalmente nas beiradas, evidenciando a influência direta das atividades humanas do entorno. “Esse efeito é reforçado por pressões externas como turismo, urbanização próxima e transporte de resíduos por rios e correntes marinhas. A vulnerabilidade das bordas sugere a necessidade de políticas de amortecimento territorial, gestão integrada e fiscalização para além dos limites formais das unidades de conservação”, enfatiza Castro (leia mais em: agencia.fapesp.br/56465).

O estudo também inovou ao cruzar dados de contaminação com indicadores socioeconômicos globais, utilizando o Global Gridded Relative Deprivation Index (GRDI) para estimar níveis de desenvolvimento em escala de um quilômetro quadrado. “Observamos um padrão não linear: em áreas não protegidas, a contaminação aumenta nos estágios iniciais de desenvolvimento econômico, mas começa a cair quando o país atinge determinado patamar de infraestrutura e governança ambiental. Já dentro das áreas protegidas, o desenvolvimento tende a aumentar a contaminação – sinal de que investimentos em gestão e fiscalização ainda não acompanham a velocidade da atividade econômica”, diz Leonardo Lopes Costa, um dos autores do estudo.

O enfrentamento da contaminação por lixo, especialmente plástico, depende de ações integradas em toda a cadeia produtiva – desde redução da fabricação, passando por sistemas eficientes de coleta e reaproveitamento, até acordos multilaterais que evitem deslocamentos transfronteiriços de resíduos. Sem mudanças estruturais na governança global do lixo, a crise só tende a se agravar. Neste contexto, um dos aspectos mais relevantes do estudo é sua utilidade direta nos processos internacionais em curso. “Os resultados oferecem uma base científica inédita para subsidiar políticas públicas e negociações, como o Tratado Global do Plástico e o Marco Global da Biodiversidade de Kunming-Montreal”, argumenta Castro.

O estudo foi apoiado pela FAPESP por meio de Auxílio à Pesquisa Regular concedido a Castro, bolsa de pós-doutorado concedida a Costa e de doutorado a Ribeiro.

O artigo Influence of protected areas and socioeconomic development on litter contamination: a global analysis pode ser acessado em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0304389425033424.

Fonte: Agência FAPESP