Reservatório de Três Marias, em Três Marias (MG), no Rio São Francisco, em 2010, quando o Projeto Grael preparava-se para implantar uma unidade no local. O nível do reservatório estava em seu nível máximo. Foto de Axel Grael. |
CRISE DA ÁGUA: O mesmo local em 2014, quando as atividades do Projeto Grael tiveram que ser desmobilizadas por falta de água no Reservatório de Três Marias. Foto acervo do Projeto Grael |
RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL. BUSCANDO UMA LUZ NO FIM DO TUBO
Axel Schmidt Grael
Engenheiro florestal, ambientalista e vice-prefeito de Niterói (RJ).
O problema da água no Brasil ganhou uma visibilidade maior para o grande público devido à grave Crise Hídrica que surpreendeu a região sudeste do país a partir de 2014. A carência de água ajudou a consolidar a percepção da escassez, principalmente nos bairros que contam com melhor infraestrutura nas grandes cidades, particularmente em São Paulo. Percebeu-se que a água pode faltar e isto é uma ameaça a todos!
Para as regiões historicamente áridas do país e para os bairros periféricos, sempre houve uma maior percepção de escassez. Eventualmente, não para os mais jovens e comunidades já atendidas pelo abastecimento de água, mas para as gerações dos “pais e avós”, que conviveram ou sentiram na pele a situação da “lata d’água na cabeça” (já cantada no carnaval de 1952), que já foi tão comum em regiões metropolitanas, como a do Rio de Janeiro.
Quem não percebeu a Crise Hídrica na torneira, verificou na conta de luz e também pela mídia, que repercutiu fartamente o drama das cidades surpreendidas pela falta d’água. A indústria, enfim, constatou que gasta água demais e, com o aumento dos seus custos, vem buscando formas de poupar água ou pesquisa alternativas para o seu abastecimento. Comércio, serviços e pessoas, em seu cotidiano, começam a repensar as suas práticas e procuram reduzir os gastos do precioso insumo: a água. Seja por consciência ou por pressão financeira.
Mas será que a “ficha caiu”? Será que os brasileiros pensaram nos motivos que nos levaram à crise? Foi má-gestão, imprevidência ou apenas culpa dos céus que não mandaram chuva na medida para os reservatórios? No momento atual, é de fundamental importância a reflexão sobre o problema e suas origens, para que, só assim, possamos corrigir os rumos do futuro.
A crise foi uma surpresa? Certamente não. O problema foi previsto e alertado com antecedência. Como exemplo, lembramos que, em entrevista à Folha de São Paulo (“Água de São Paulo está no fim, diz Nogueira Netto”, Folha, 25 de maio de 1977, Primeiro Caderno, página 12. Para saber mais acesse aqui), o professor Paulo Nogueira Neto, pioneiro da causa ambiental no país, já tinha alertado, com quase 40 anos de antecedência, para uma crise de abastecimento em São Paulo e Belo Horizonte. Na entrevista, Nogueira Neto, afirmou: “talvez, antes do final do século, São Paulo terá que se abastecer com água transportada do vale do Ribeira.” O Dr. Paulo Nogueira Neto e outras vozes do passado não foram ouvidos e os problemas acabaram negligenciados: mananciais desmatados e ocupados irregularmente, rios assoreados etc. O mestre Paulo Nogueira Neto pode ter errado a pontaria na data e na bacia hidrográfica, mas não no mérito da preocupação. Nos últimos meses, o Supremo Tribunal Federal precisou mediar o conflito entre os estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais pois, como previsto pelo visionário ambientalista, o Governo de São Paulo anunciou a intenção de derivar água do Rio Paraíba do Sul para suprir as suas necessidades de abastecimento.
A crise foi uma surpresa? Certamente não. O problema foi previsto e alertado com antecedência. Em 1977, Paulo Nogueira Netto afirmou: “talvez, antes do final do século, São Paulo terá que se abastecer com água transportada do vale do Ribeira.”
Várias foram as tentativas e as chances de prevenir ou mudar a situação no passado. Em 1934, foi instituído o Código de Águas (Decreto-Lei 24.643/1934), que já definia medidas de proteção, ordenamento do acesso e do uso da água, estabelecendo, inclusive, o instituto da cobrança pelo uso da água. O Código das Águas de 1934 foi idealizado em um contexto de crise econômica, na transição entre os Séculos XIX e XX, quando o país experimentou a troca de uma economia rural para industrial e já se previa a necessidade do uso energético da água para suprir as necessidades de desenvolvimento. No mesmo ano, foi instituído o primeiro Código Florestal (Decreto-Lei 23.793/1934), que surgiu em meio ao processo de rápida expansão da lavoura cafeeira e motivado pelo aumento do preço da lenha, uma vez que as florestas estavam cada vez mais longe das cidades. O Código Florestal pioneiro instituiu a obrigação da manutenção de 25% das propriedades com florestas, para a garantia da oferta de lenha. Instituiu também as Florestas Protetoras com a finalidade de: “conservar o regimen das águas, evitar a erosão das terras pela acção dos agentes naturaes, (...) assegurar condições de salubridade pública...”
Portanto, ainda no início do Século XX, verificava-se a preocupação com a disponibilidade e o uso da água e já se tinha com clareza a importância das florestas na garantia da oferta da água. O conceito das Florestas Protetoras, de 1934, deu origem às Áreas de Preservação Permanente - APP’s, da legislação florestal atual. Curiosamente, quase um século depois, os conflitos e os jogos de interesse que marcaram a discussão na década de 1930 ainda estão vivos.
Hoje, como defendiam os antigos legisladores, está clara a relação entre floresta, clima e regime hídrico. Por exemplo, meteorologistas têm comprovado que a Amazônia possui relação com o regime de chuvas na região sudeste e que o desmatamento daquele patrimônio brasileiro poderá alterar essa relação. Apesar disso, setores atrasados do ruralismo nacional, apoiados por outras forças conservadoras, ainda reagem contra o reconhecimento legal da importância das florestas para a proteção dos rios e nascentes. Recentemente, patrocinaram forte reação contra estes dispositivos durante a aprovação do terceiro Código Florestal, aprovado no Congresso Nacional (Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012).
No que se refere ao Código de Águas, muitos conceitos daquele antigo instrumento legal ainda estão mantidos na legislação vigente em nossos dias ou foram substituídos pela Lei 9.433, de 08 de janeiro de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos. Esta lei surgiu do resultado de uma longa e ampla discussão no país, que se arrastou por cerca de dez anos. Um dos mais acalorados debates foi para que se reconhecesse que a política de recursos hídricos deveria sair da tutela do setor de energia do governo para a área ambiental. Nos debates, argumentava-se que a área de energia, que dava as cartas sobre as águas desde o Código de 1934, era um dos segmentos interessados e não deveria ter a supremacia sobre outros setores usuários.
No debate, prevaleceu a visão ambiental e o modelo de gestão de águas estabelecido seguiu o exemplo francês: gestão descentralizada, com ênfase na governança por bacias hidrográficas, prevendo a participação ativa da sociedade. Em seu primeiro artigo, a lei estabelece que: "a água é um bem de domínio público e dotado de valor econômico”. Estabeleceu ainda como principais instrumentos, o plano de recursos hídricos, outorga de direito de usos das águas, cobrança pelo uso da água, enquadramento dos corpos d'água e sistemas de informações sobre recursos hídricos.
Ocorre que, mais uma vez, a legislação demora a produzir resultados práticos. Quase 20 anos depois, poucas bacias hidrográficas no país contam plenamente com instrumentos de governança previsto na lei. Todo território precisa ter gestão e, para se ter gestão, é preciso que se estabeleça a governança. Portanto, a quase totalidade dos nossos rios continua no abandono.
Qualidade da água: saneamento e saúde
Outra séria preocupação na agenda é a qualidade da água. Aqui destacamos dois aspectos: saneamento e a poluição industrial. O saneamento é um dos maiores dramas nacionais. Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS, 2013), 82,5% da população brasileira conta com abastecimento de água, 48,6% possui esgoto coletado e apenas 39% do esgoto é tratado no país. A consequência é um desastre ambiental para os rios brasileiros e para a saúde da população.
O saneamento é um dos maiores dramas nacionais. Apenas 39% do esgoto é tratado no país. A consequência é um desastre ambiental para os rios brasileiros e para a saúde da população.
Segundo um estudo do Instituto Trata Brasil (Kronemberger, Denise: Análise dos Impactos na Saúde e no Sistema Único de Saúde Decorrentes de Agravos Relacionados a um Esgotamento Sanitário Inadequado dos 100 Maiores Municípios Brasileiros no Período 2008-2011. Publicado em 2013), em 2011, os gastos do Sistema Único de Saúde - SUS em internação por diarreia, apenas nos 100 maiores municípios brasileiros, foi de R$ 22.420.240, o que significa um gasto de R$ 28.833,88 para cada 100 mil habitantes. Estes 100 maiores municípios representam 77.756.588 habitantes, representando 40,4 % da população total do país (o Brasil possui 5.570 municípios). Em 2011, estes 100 municípios representaram 16% das internações por diarreia no país.
A análise dos relatórios do Instituto Trata Brasil, que usam dados oficiais do SNIS, mostra uma constatação preocupante: os municípios com o melhor resultado em saneamento não apresentam, necessariamente, os melhores resultados quanto aos indicadores de doenças de veiculação hídrica. Verifica-se, também, que os municípios com mais saneamento ainda não conseguiram que seus rios estejam limpos. Então, por que um maior investimento em saneamento não tem resultado em melhores condições de saúde pública e qualidade ambiental? A resposta deve estar na performance deste saneamento.
"... os municípios com mais saneamento ainda não conseguiram que seus rios estejam limpos. Então, por que um maior investimento em saneamento não tem resultado em melhores condições de saúde pública e qualidade ambiental? A resposta deve estar na performance deste saneamento".
O Brasil precisa, portanto, repensar o seu modelo de saneamento, ainda baseado na estrutura de empresas estatais e algumas experiências de concessões para o setor privado. A resposta deve estar na falta de uma regulação adequada. Independente do operador do serviço, seja ele público ou privado, quem cobra a eficiência do sistema? Quem garante o cumprimento das metas?
Vejamos, como exemplo, a experiência de Portugal. Quando o país aderiu à Comunidade Europeia, teve que se adaptar aos padrões ambientais vigentes para a Europa. Em dez anos, o país saiu de uma realidade comparável à brasileira e atingiu as metas europeias. O que fez a diferença? Certamente foi o estabelecimento de um modelo institucional para o setor, investimentos e regulação (metas e rigoroso acompanhamento). Investimentos não têm se mostrado o nosso maior desafio, uma vez que as verbas do Programa de Aceleração do Crescimento - PAC para saneamento têm tido baixa execução orçamentária, ou seja, sobram! O desafio, então, está no modelo e na regulação.
Poluição industrial
No campo da poluição industrial, deve ser onde alcançamos os melhores resultados, embora o Brasil ainda esteja muito longe do ideal. Neste tema, a ação dos órgãos ambientais encontrou respaldo numa legislação rigorosa (principalmente a Lei de Crimes Ambientais: Lei Federal 9.605/1998) e instrumentos de mercado que, com seus mecanismos de certificação etc., levaram as empresas ao aperfeiçoamento da gestão ambiental e à modernização tecnológica.
Mas ainda há muito por se avançar. A legislação ambiental precisa se atualizar e adotar critérios mais coerentes com a realidade. Influenciados por uma visão sanitarista dos anos 1960/1970, os padrões que regulam o lançamento de efluentes são baseados em critérios de concentração, ou seja, são medidos em mg/litro, ou similares. Com os corpos hídricos saturados de hoje, precisamos adotar critérios de carga sobre o corpo receptor, em substituição à concentração. Ou seja, o foco tem que estar na quantidade de poluente e não em quanto de água a indústria utiliza para diluir esse produto descartado.
"Influenciados por uma visão sanitarista dos anos 1960/1970, os padrões que regulam o lançamento de efluentes são baseados em critérios de concentração, ou seja, são medidos em mg/litro, ou similares".
Superando esta defasagem regulatória, poderemos chegar ao mesmo estágio da preocupação dos países desenvolvidos: foco na poluição acidental e a chamada poluição das fontes não pontuais, como, por exemplo, drenagem urbana. Ou seja, a ênfase deixa de estar na “boca do tubo”, mas no somatório de todas as origens de poluição, numa visão mais ampla dos impactos de toda a bacia hidrográfica.
Curiosamente, um dos lugares onde mais se tentou avançar no tema foi o estado americano de Maryland. Lá, liderados por um governador de visão ambientalista, o democrata Martin O’Malley, procurou-se implantar uma política para controlar a poluição oriunda do sistema de drenagem urbana (“storm water”) e controlar, assim, a principal fonte de contaminação da Baía de Chesapeake. A política de O’Malley previa o estabelecimento de uma taxa a ser paga sobre a impermeabilização do solo, enfim, pelo cidadão, para financiar o programa. Seus adversários republicanos o acusaram de querer instituir um imposto sobre a chuva (“rain tax”) e, como resultado, um dos mais ambientalistas gestores públicos dos EUA, foi derrotado nas eleições em 2014, num estado tido como de vanguarda ambiental e em que os democratas vinham mantendo uma hegemonia histórica! Para reflexão...
Lixo
Dois episódios atuais tem marcado a imagem do problema da presença do lixo nos cursos hídricos do país: a estiagem em São Paulo causou a queda abrupta na vazão e a imagem da quantidade imensa de lixo acumulado no leito dos rios correu o país através da mídia. O outro caso é o da Baía de Guanabara, que se prepara para sediar os Jogos Olímpicos Rio 2016. O problema do lixo flutuante na Baía de Guanabara tem repercutido negativamente entre atletas da vela do mundo todo, que buscam as águas olímpicas para treinar.
Lixo na Baía de Guanabara. Foto de Axel Grael |
O lixo chega na Baía de Guanabara pelos rios, numa realidade que demonstra a deficiência dos serviços de coleta e de disposição adequada do lixo e a falta de consciência de muitos cidadãos.
Segundo o IBGE (Censo, 2000), em toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 73% dos domicílios são atendidos por serviços de limpeza e coleta de lixo doméstico. Cerca de 7% dos moradores que não eram atendidos por serviços de coleta afirmaram que depositavam o seu lixo em caçambas e 3,5% admitiram que queimavam, enterravam ou lançavam em rios.
Em 2015, a pedido do secretário estadual do Ambiente, André Corrêa, o Projeto Grael preparou um estudo sobre soluções emergenciais para o problema do lixo flutuante na Baía de Guanabara, visando atingir as condições adequadas para os Jogos Olímpicos Rio 2016.
Com base no estudo, a Secretaria Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro anunciou um programa de R$ 31 milhões para controlar o problema em limites aceitáveis até agosto de 2016, data dos Jogos Olímpicos. O programa baseia-se na implantação de ecobarreiras, utilização de ecobarcos e campanhas de conscientização. Como o próprio governo do estado admite, o programa é um paliativo, mas indispensável para garantir a qualidade das competições de vela nas águas da baía.
É de conhecimento geral que o problema do lixo nos rios ocorre em todo o país e que a sua solução depende da melhoria dos serviços públicos. Porém, além da conscientização, só avançaremos na solução do problema quando o Brasil implantar uma política séria e abrangente (multisetorial) de logística reversa. Assim como se faz nos países europeus e outras partes do mundo, não é possível admitir que a indústria externe para a sociedade os seus custos com embalagens e outros produtos que geram o lixo descartado nos rios.
Por fim, muitas são as frentes de atualização regulatória que poderão resultar num novo cenário para os recursos hídricos no país, mas o certo é que o grande desafio está na gestão e na governança. Hoje, vemos que, mesmo com os seus defeitos e defasagens aqui apontados, a legislação brasileira avançou muito mais do que a capacidade do poder público de implementá-la. A atenção precisa estar em todas essas frentes para que o Brasil atinja uma outra realidade na gestão da água, este recurso que acabamos de descobrir que é e será cada vez mais escasso.
A atual Crise da Hídrica nos obrigou a acostumar com um termo assustador: “volume morto”. Que nos alerte! Sejamos responsáveis, para que os rios sobrevivam e nós também.
GRAEL, Axel Schmidt (2015): “RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL: buscando uma luz no fim do tubo”, PENSAR VERDE, Revista de Debates da Fundação Verde Herbert Daniel, Abr/Mai/Jun 2015, Número 13, Ano 3. Pág. 22-27.
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