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quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Como as bicicletas tomaram as ruas das cidades holandesas





Testando uma bicicleta de carga elétrica na "Fair Friends" (feira de comércio justo), em Dortmund.


Estive recentemente na Alemanha participando do Connective Cities Dialogue Event: Climate Proofing Urban Development, evento promovido pela organização Connective Cities e pelo governo alemão, através do Federal Ministry for Economic Cooperation and Development - BMZ. O evento teve o apoio do GIZ (Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit), também do governo alemão, além da Associação Alemã de Municípios (Deutscher Städtetag) e da instituição Engagement Global / Service Agency Communities in One World.

Representantes de 15 cidades, além de universidades e das organizações promotoras do evento, se reuniram em Dortmund para compartilhar boas práticas de políticas públicas para o clima e discutir formas de cooperação.

Durante a viagem, visitei a cidade de Münster, considerada a capital da bicicleta na Alemanha e observei a experiência das cidades por onde passei na implantação de infraestrutura para o estímulo ao uso da bicicleta e para a amenização do tráfego nas ruas.

Mesmo na Alemanha, onde também já conheci exemplos notáveis como de cidades como Berlin, há sempre uma grande referência ao exemplo dos holandeses.


Como cidades holandesas se tornaram referência mundial do uso da Bicicleta?

Durante a viagem, aproveitei para ler o livro "Building the Cycling City: the Dutch blueprint for urban vitality", de Melissa Bruntlett e Chris Bruntlett, que me foi presenteado pela arquiteta e urbanista carioca, Isabela Ledo, que coordenou o programa Niterói de Bicicleta e que recentemente voltou a residir em Amsterdam.

O livro conta a trajetória de algumas cidades para se tornarem mais cicláveis e fazer da bicicleta uma opção viável, segura e atraente para o deslocamento regular da população.

Foi uma leitura interessante, principalmente por fazê-la experimentando in-loco, nas cidades que visitei, como a cultura da bicicleta se fortalece como um dos alicerces do modelo da cidade sustentável europeia.

Seguem alguns comentários e apontamentos da leitura do trabalho dos Bruntlett, acrescido de observações pessoais e de informações de outras fontes.

A cidade de Amsterdam, na Holanda, é reconhecida mundialmente como a cidade com a maior presença da bicicleta na mobilidade urbana. Para se ter uma ideia, atualmente 70% dos deslocamentos no Centro da Cidade (incluindo pedonal) são feitos por bike.

E Amsterdam não é o único bom exemplo. Os Bruntlett também citam outras cidades dos Países Baixos, especialmente Utrecht, Rotterdam, Eindhoven e Groningen.

E a reputação das cidades holandesas isso não aconteceu de uma hora para outra, mas é o resultado do debate em torno do modelo de cidade que se pretendia adotar para Amsterdam durante a sua reconstrução, após a cidade ser destruída durante a II Guerra Mundial.

As cidades antes da II Guerra Mundial

A bicicleta padrão atual foi inventada pelo inglês John Kemp Starley, em Coventry, Inglaterra, em 1888. O invento foi copiado pelos holandeses e a produção de unidades cresceu rapidamente, a ponto do modelo passar a ser chamado de "bicicletas holandesas".



A bicicleta e transporte coletivo (trilhos) já presentes no cotidiano das cidades antes da Guerra. Carros eram raros. Imagens da Internet.

Antes da Guerra, as cidades eram menores e as ruas eram espaços de encontro, uma vez que as habitações eram muito pequenas e as pessoas buscavam os espaços abertos e as ruas eram o principal local de convívio.

O cotidiano das pessoas não requeria grandes deslocamentos, que era feito a pé, de bicicleta e utilizando transportes coletivos. Amsterdam, por exemplo, tinha 10 carros/1000 habitantes.

As cidades, muitas delas com história de muitos séculos, tinham ruas estreitas, com a presença próxima de residências, comércios e serviços a disposição do público.


Ironicamente, tropas alemãs invadiram cidades holandesas utilizando bicicletas. Foto Internet


O país, que não se envolvia em conflitos de tal violência desde a invasão das tropas napoleônica em 1795, conviveu com cinco anos de ocupação alemã e o bombardeio que arrasou cidades, principalmente as áreas mais industrializadas, ou de importância estratégica, como as regiões portuárias e outras áreas importantes da infraestrutura do país. As principais cidades foram duramente destruídas.

A reconstrução da Europa no Pós-Guerra


A cidade de Rotterdam, destruída pela guerra. Na imagem, bairro já com os escombros retirados e preparando-se para a reconstrução. Imagem da Internet


Com o fim da guerra, o presidente dos EUA, Harry Truman, ofereceu o Programa de Recuperação Europeia, que ficou conhecido como Plano Marshall, e que disponibilizou US$ 15 bilhões para 16 países que aderiram ao programa. Importante considerar que a ajuda representava 5% do PIB americano.

O Plano foi assinado em abril de 1948 e teve um critério básico de alocação de recursos de acordo com a população de cada país. Mas, houve principalmente um critério geopolítico, de contexto de início da Guerra Fria, com os países mais industrializados recebendo um valor per capita maior (Grã Bretanha: recebeu cerca de 25% de todo o valor; França: recebeu cerca de 20% e a Alemanha Ocidental) e países como a Itália, que havia aderido ao Eixo, junto com os alemães, e a Suíça, que manteve-se neutra, receberam menos. A Holanda recebeu cerca de 1 bilhão de dólares, parte em empréstimo, mas a maior parte em doações.

Obviamente, a oferta substancial de dinheiro para a reconstrução dos países garantiu uma enorme influência americana no pós-guerra europeu e abriu um enorme mercado para as empresas americanas que prestaram serviços para a reconstrução da infraestrutura e das cidades.

O rodoviarismo avança sobre a Europa

Nos EUA, verificava-se há alguns anos uma tendência de redesenho das cidades, com o fortalecimento do conceito dos subúrbios residenciais e o distanciamento das residências dos locais de trabalho. Os centros metropolitanos foram se tornando mais locais de trabalho, de comércio e de outros serviços e cada vez menos residenciais.

Surgia o problema do espraiamento urbano ("urban sprawl") e para viabilizar o modelo, surgia a necessidade de se garantir a mobilidade da população. Diferente da Europa que já apostava no transporte coletivo, nos EUA a aposta foi no transporte individual, por automóvel. Para abrigar o crescimento exponencial do número de automóveis, estradas e vias urbanas tiveram que ser abertas ou redimensionadas.

Ganhou notoriedade na época o nome de Robert Moses, que liderou a reforma urbana de Nova York, abrindo 35 highways, 12 pontes e várias obras de infraestrutura. Curiosamente, um dos ícones do rodoviarismo da época também foi responsável pela implantação de um grande número de parques e consolidou o conceito dos parkways.

A Europa destruída e a forte a influência americana fizeram chegar as ideias dos urbanistas modernistas dos EUA, que venderam a ideia de uma cidade com mais luz, ar e espaço. As funções da cidade foram separadas e as áreas centrais das cidades passaram a ser dedicado à economia. Prédios monofuncionais foram construídos para bancos e outras atividades comerciais. Avenidas rasgaram o tecido urbano e estacionamentos foram construídos para sustentar o crescente número de carros.

Carros tomaram conta e a função publica das ruas foi deslocada para praças, parques ou outros lugares.

Assim como aconteceu nos EUA, o número de carros cresceu rapidamente. Na cidade antiga, do período antes da Guerra, as ruas eram estreitas e o conflito entre bicicletas carros, engarrafamentos a demanda por estacionamento ficou evidente.


Imagem de Amsterdam, com a sua rede de canais.

Passaram a surgir uma miríade de propostas para resolver o problema das ruas entupidas de carros. Em 1954, o comissário de polícia de Amsterdam, Hendrick Kaasjager, sugeriu aterrar vários canais para construir avenidas circulares e estacionamentos. O empresário Pieter Van Dijk chegou a secundar a proposta de Kaasjager, publicando em Het Vrije Volk ("O povo livre"): "Aterrem nove décimos dos canais o mais rápido possível". "Nossas crianças e netos não sentirão falta dos canais. E podemos sempre deixar alguns

A população de Amsterdam rejeitou e ridicularizou a ideia, mas em Utrecht a proposta começou a ser colocada em prática, mas logo foi abandonada.

David Jokinens, um jovem engenheiro de tráfego americano, a convite da Stichting Weg (Road Foundation), propôs um plano denominado Geef de Stad een Kans ("Give the City a Chance"), inspirado no modelo americano de Moses. O que pretendia na verdade era "Dê uma chance para o carro na cidade".

Entre as décadas de 1960 e 1970, o número de carros quadruplicou.


Amsterdam: a cidadania une-se em torno da bicicleta

"O terror do asfalto da burguesia motorizada foi longe demais", dizia as primeiras linhas de um manifesto mimeografado distribuído em Amsterdam em 25 de maio de 1965. O manifesto era de autoria de uma organização comunitária chamada PROVOS.

Os militantes da Provos propuseram o fechamento do Centro da cidade aos carros e que a área fosse atendida por uma frota de 20.000 bicicletas brancas oferecidas de forma gratuita à população.

Em 1966, conseguiram eleger apenas um parlamentar e tiveram pouca ou quase nenhuma influência nas políticas públicas. Organizaram frequentes manifestações (chamadas de "happenings") que paravam o trânsito e alimentaram de forma pioneira o debate contra o automóvel.

A mobilização demorou a surtir efeito. Em 1972, o Verkeensplan (Plano de Tráfego) seguiu os planos de Jokinen, focando apenas em carros e trens, sem citar bicicletas uma só vez.

O Plano previa demolir trechos do antigo e histórico Jodenbreestraat (bairro judeu), abandonado por aquelas famílias após o trauma da Guerra e que foi ocupado por artistas, poetas e sem-tetos. Muitos eram militantes ou simpatizantes do PROVOS, que ganhou mais força.

Outras organizações também surgiram e reforçaram a luta contra o automóvel a causa da bicicleta. O livro dos Bruntlett citou o surgimento de vários outras iniciativas de ativismo pela bicicleta e pela segurança no trânsito.

Tornou-se emblemático o surgimento do movimento ativista Stop de Kimdermoord (Stop Child Murder), inspirado num edital de página inteira no jornal De Tijd ("The Times"), escrito pelo jornalista Vic Langenhoff, que teve a sua filha de 6 anos morta por atropelamento quando ia de bicicleta para a escola. O motorista causador do atropelamento recebeu uma multa de 150 guilder (US$ 50).

O caso chocou os holandeses e inspirou ações de cidadania, como o caso da ativista Maartie van Putten, de 23 anos, que acabava de ser mãe e criou um movimento de impacto nacional.. Na época, acidentes no trânsito matavam 3000 pessoas/ano, sendo 450 crianças.

Em 1972, ocorreram muitas manifestações promovidas por organizações comunitárias e diante da crescente mobilização, o parlamento decidiu derrubar o Plano de Tráfego vigente, por apenas um voto de diferença (23 a 22 votos). A "Reforma Urbana" foi derrotada e o bairro Jodenbreestraat foi salvo.

Mantendo a mobilização, os cicloativistas mantiveram uma intensa agenda de manifestações:

  • Em 1975, 3000 ciclistas foram para a ruas, 
  • Em 1976 foram 4.000, 
  • Em 1977 foram 9.000. 
  • Em 1978, foram 15.000. 

A pressão popular deu resultado. No mesmo ano (1978), uma nova legislatura no parlamento aprovou por ampla margem, por 38 votos a 7, o Verjeerscirculatieplan ("Traffic Circulation Plan"), agregando as ideias colhidas das ruas.

A consolidação da presença da bicicleta nas ruas

É importante dar atenção a um fato importante. Segundo os Bruntlett, de 1978 até hoje, o crescimento de ciclovias na cidade não foi um sucesso natural como se poderia supor. O que fez a diferença para as bicicletas foi as estratégias de traffic calming, diminuição de vagas de estacionamento, redução ou estreitamento de pistas.

A implantação de ciclovias aconteceu de forma mais incremental, construídas gradualmente ao longo das décadas, em complementação às medidas de moderação do tráfego.

Números que impressionam

USO DA BICICLETA: Hoje, a Holanda tem 22,5 milhões de bicicletas e 18 milhões de habitantes, holandeses fazem 4,5 bilhões de deslocamentos por bicicletas/ano, com cada holandês pedalando uma média de 1000 km/ano e cada adolescente 2000 km/ano.

MAIS BIKE DO QUE CARRO: Em dezembro de 2016, a Dinamarca declarou que o número de bicicletas superou carros no país. No mesmo ano, 202 cidades da Holanda já tinham mais deslocamentos de bicicletas do que de carro para viagens de menos de 7,5 km.

CULTURA: Holandeses não pedalam tanto por que são conscientes, por que o Clima é bom e o país é plano. Pedalam por que é conveniente e seguro e por que contam com 35 mil km de ciclovias. 75% das ruas urbanas têm velocidade de automóveis controlada para 30 km/h ou menos.

Holandeses pedalam por que o governo investe 30 euros/habitante/ano. Corresponde a 15 vezes o que a Inglaterra investe. O número de acidentes fatais no país é de 3,4/100.000 habitantes/ano. Nos EUA é de 10,6. A mesma taxa holandesa nos EUA salvaria 20.000 vidas/ano.

BIKE E SAÚDE: Em 2015, a OMS previu que a Holanda seria o único país a cumprir as metas de redução de obesidade, chegando a 2013 com apenas 8,5. A Irlanda terá 50%.

Segundo relatório da Universidade de Utrecht, o uso da bicicleta nos níveis atuais evitam 6.500 mortes prematuras/ano, economizando 19 bilhões de euros, equivalente a 3% do PIB.

BIKE E CLIMA: No que se refere às questões climáticas, o transporte representa 20% das emissões dos GEE/ano do país. Nos EUA é a principal fonte de emissão, com 33% das emissões.

HOLANDESES E CARRO: Para os mais adeptos do uso do automóvel, um dado interessante: o Índice de Satisfação do Motorista do aplicativo Waze, que analisa a experiência de 65 milhões de usuários em 38 países e 235 cidades no mundo, indicou a Holanda como o país campeão de satisfação para dirigir o carro, devido à boa qualidade do trânsito e a "sólida qualidade das estradas e ruas". Ou seja, mais bicicletas também é bom para o motorista de carro.

Curiosamente, holandeses possuem uma taxa de posse de automóveis similar à do Reino Unido! Por sua vez, na Holanda, o número de usuários de bicicleta para lazer e esporte diante do uso para mobilidade é irrelevante. As bicicletas são, de fato, um modo de mobilidade de ampla utilização.

BICICLETAS ELÉTRICAS: em 2014, a Alemanha ofereceu 1,4 bilhões em subsídios para incentivar o carro elétrico e resultou na venda de apenas 24.000 unidades vendidas. Enquanto isso, sem qualquer subsídio, 2,1 milhões de bicicletas elétricas estão hoje nas ruas da Alemanha.


Niterói de Bicicleta

Em 1980, fui o idealizador e o fundador do Movimento de Resistência Ecológica - MORE, grupo ambientalista pioneiro na cidade de Niterói, que teve como bandeira inicial a despoluição da Baía de Guanabara a e a luta contra as Fábricas de Sardinha que lançavam rejeitos na Enseada de Jurujuba e na Zona Norte de Niterói. A organização marcou época na história ambientalista de Niterói, tendo reunido mais de 2.000 filiados e um número grande de seguidores e simpatizantes.

Ainda na década de 1980, passamos a reivindicar também ciclovias em Niterói e organizamos manifestações de bicicletas, que chamávamos de "Bicicleatas", ou seja, passeatas de bicicleta. Reunimos centenas de participantes, mas ainda era "pregar no deserto".

Diziam, na época, que o uso da bicicleta como opção de mobilidade em Niterói era inviável, pois o clima da cidade era muito quente, o relevo montanhoso era um obstáculo e que ninguém se interessaria em pedalar pelas nossas ruas. Tínhamos a certeza do contrário: bicicletas eram uma opção para Niterói, sim!

Em 2013, quando fui eleito vice-prefeito de Niterói, compondo a chapa com o prefeito Rodrigo Neves, lançamos o programa Niterói de Bicicleta. Ainda na primeira gestão (2013-2016), alcançamos 40 km de ciclorotas na cidade e estamos agora nos preparando para lançar a licitação para construir mais 60 km de vias cicláveis na Região Oceânica de Niterói (projeto está em fase final de elaboração), como parte do Programa Região Oceânica Sustentável - PRO-Sustentável. Também estão em execução a implantação da ciclovia na Avenida Marquês do Paraná, que conectará as ciclovias das avenidas Roberto Silveira, Amaral Peixoto e Jansen de Melo. A licitação do Sistema de Bicicletas Compartilhadas de Niterói está em andamento e será concluída nas próximas semanas.

Gradativamente, à medida que o programa Niterói de Bicicleta avança, estamos afastando o pessimismo dos céticos, a resistência dos mais conservadores e que ainda estão apegados ao automóvel e a má vontade daqueles que, por motivação política, torcem para que tudo dê errado. E está dando certo!

Saímos do quase zero para um cenário em que a bicicleta já é uma realidade nas ruas de Niterói e o número de ciclistas já é destaque nacional. Em momentos de pico, nossas contagens já identificaram mais de 500 bicicletas/hora, mais de 4.200/dia. Basta ver as ciclovias das avenidas Roberto Silveira e da Amaral Peixoto intensamente ocupadas o dia todo. Basta ver o nível de ocupação do Bicicletário Arariboia, no Centro de Niterói, para ter certeza que a bicicleta em Niterói chegou para ficar.

É Niterói avançando no rumo da sustentabilidade e de se tornar uma referência de cidades cicláveis no Brasil.

Axel Grael
Coordenador Geral do programa Niterói de Bicicleta

Secretário
Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Modernização da Gestão - SEPLAG
Prefeitura de Niterói




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