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sábado, 31 de julho de 2021

Torça por mim: Como uma volta ao mundo ajudou Martine Grael na preparação para Tóquio



Velejadora campeã olímpica Martine Grael. Foto Guito Moreto / Agência O Globo Foto: Guito Moreto / Agência O Globo


Campeã olímpica nas Olimpíadas do Rio, em 2016, a velejadora conta como tentou se desafiar como pessoa e profissional até chegar nos Jogos Olímpicos

Martine Grael, em depoimento a Carol Knoploch

Eu precisei dar uma volta ao mundo para estar aqui em Tóquio. Não me refiro apenas à longa viagem de avião até aqui. Estou falando de experiência, vivência e desafios. Corri a Volvo Ocean Race, maior competição de vela oceânica do mundo, no meio do ciclo olímpico de Tóquio e a bordo do barco holandês AkzoNobel. Terminamos em quarto lugar e a equipe chinesa Dongfeng Race se sagrou campeã. Mesmo com as diferenças óbvias entre os barcos e as propostas de cada categoria, a regata de volta ao mundo me desenvolveu esportivamente mas também contribuiu para meu crescimento pessoal. Aprendi a aceitar maneiras diferentes de lidar com as situações adversas e amoleci o coração — e olha que sou muito cabeça dura. Considero esta regata um dos aprendizados mais importantes da minha vida. Pelo menos até aqui... Se não tivesse aceitado esse desafio, não sei se estaria tão focada e ao mesmo tempo tão tranquila. Vou defender o ouro conquistado no meu país.

Em 2017/2018, a Volvo abriu de vez as portas para nós mulheres. Os homens velejam há anos juntos e a gente está entrando nesse mundo agora, aos poucos. Eles têm menos confiança na gente. Desta vez, porém, a regra para a composição dos barcos beneficiou aqueles que escalaram atletas do sexo feminino. Para ter nove a bordo, era preciso escalar, no mínimo, duas mulheres. No total, 17 mulheres disputaram esta edição, três no nosso barco e eu fui a primeira brasileira a entrar nessa. Carolijin Brouwer, uma holandesa que morou por uma década no Rio de Janeiro e Belo Horizonte, estava no barco campeão.

Já havia recusado um convite para a Volvo em 2014 porque priorizei a preparação para o ciclo Rio-2016. Vivi somente para aquilo. Desta vez, senti que precisava dar um tempo da rotina. Mas, diferentemente do vôlei de praia, que tem frequentes trocas de dupla, na vela olímpica é preciso ter um biotipo ideal para cada classe. É muito difícil ter intercâmbio entre as classes. Eu e a Kahena Kunze procurávamos oportunidades profissionais dentro da nossa modalidade e que fossem um respiro da vela olímpica. Temos uma amizade muito grande, mas o trabalho obviamente desgasta a relação.

A vela oceânica é uma aventura e uma regata muito interessante porque somos desafiados a conviver em equipe, a buscar resultado, além da boa passagem em pontos extremos do planeta. Por isso, o convite foi perfeito, no timing certo. Me deu fôlego para depois me entregar novamente ao 49erFX.

Superação e reinvenção

Falo assim, mas a decisão de entrar naquele barco não foi fácil. Duvidei se tinha as competências necessárias. Nunca tinha feito regatas de um continente ao outro. Conversei com colegas, treinadores e com meu pai, o Torben, que venceu a Volvo em 2008/2009 comandando o barco sueco Ericsson 4. Ele me perguntou se era isso que eu queria umas três vezes. Eu sou assim, antes de mergulhar de cabeça, pesquiso, questiono. Até em relacionamentos. Não gosto de me frustrar... E acabou que nesta viagem eu me frustrei, me superei, me reinventei.

Quando resolvi embarcar, duas pessoas de extrema confiança, experientes em regata oceânica e que estariam no time holandês, se desligaram da competição. Com eles, eu sei que me sentiria à vontade até para fazer perguntas estúpidas. Coisa de principiante. E essas desistências aconteceram horas antes do embarque. Balancei... Como passaríamos pelos mares do Sul, os mais perigosos?

Resolvi experimentar mesmo assim. Ao menos a primeira perna. Se não me sentisse confiante ou se tivesse alguma questão, parava. Resolvi encarar a segunda perna. O australiano Chris Nicholson, com seis voltas ao mundo no bolso, mas que havia levado seu barco para pedras no ano anterior, foi convidado a entrar no time. Na hora pensei que a coisa ia afundar. Topei a terceira perna e virei fã dele. Um verdadeiro líder. Quando fui ver, já estava na metade da regata. E veio a certeza: “Se cheguei à metade, aguento o resto”.

Me perguntam sobre as principais dificuldades de uma regata como esta, com duração de cerca de nove meses, 45 mil milhas náuticas percorridas, cruzando quatro oceanos, tocando seis continentes e 12 cidades mundiais, entre elas Itajaí (SC). As coisas ruins, esquecemos rapidinho. Só ficam as boas lembranças. Por isso que as pessoas voltam para fazer essas loucuras.

E para mim a parte mais incrível, além da chegada no litoral do Brasil, com recepção na água dos meus pais, foi quando tive a oportunidade de timonear em parte dos mares do sul, da Nova Zelândia ao Brasil, chegando perto do Estreito de Magalhães, entre o continente da América do Sul, a Terra do Fogo e o Cabo Horn.

Frio na barriga

A descida da onda era muito longa e a aceleração era tão forte que dava frio na barriga. Uma tensão constante com a aproximação das ondas seguintes e o limite para a escolher entre um lado e o outro. Foi muito emocionante apesar da notícia do falecimento de um colega de outra equipe, na perna anterior. Ele se perdeu no mar. A tristeza era inevitável mas veio acompanhada de solidariedade. Foi a primeira vez que senti a preocupação mútua na nossa tripulação. Foi nosso ponto de virada.

Os mares do sul são espetaculares. Dá uma mistura de medo e amor. Você se sente insignificante em relação à força da natureza, a grandiosidade das ondas e a beleza dos albatrozes. Me achava super veloz a 30 nós, mas eles têm eficiência de voo. Davam três voltas na gente, sem bater a asa... Precisamos aprender muito com a natureza.

Claro que o convívio não é fácil. E na segunda semana todo mundo fica um pouco louco por causa do confinamento. Os perrengues com o frio (cheguei a congelar um dedo do pé) e o calor extremo também fizeram parte do roteiro. Tinha sempre uma barra de chocolate para me aquecer no frio e spray de água para amenizar o calor. Listo ainda a comida desidratada e a roupa encharcada constantemente. A sensação que tenho é que vivi muitos anos em meses.

Mas era o que eu precisava após um ouro olímpico. Buscar melhorar como pessoa e velejadora. Quero que eu e a Kahena consigamos render tudo o que podemos nas águas de Enoshima. O resultado será correspondente. Já velejamos no Japão e sabemos que pode ter calmaria ou mar mexido. O ouro da Rio-2016 parece tão distante após um ciclo agitado como esse. Mas é inevitável relembrar aqui em Tóquio daquela chegada na Baía de Guanabara, com ultrapassagem na última boia e o frio na barriga. Tenho a esperança de sentir algo parecido de novo.

Fonte: O Globo  



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