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quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Madeireiras da Amazônia fraudam licenças para extrair mais do que o permitido



Toras de madeira encontradas na Amazônia - Divulgação/USP 


Ana Lucia Azevedo

Pesquisa da USP estima que 44% da madeira retirada do Pará em 2015 e 2016 foi ilegal

RIO - A extração ilegal de madeira produziu na Amazônia uma floresta imaginária paralela, criada para fraudar a fiscalização, revela uma pesquisa publicada nesta quarta-feira numa das revistas científicas de maior repercussão no mundo, a “Science Advances”. O estudo investiga os artifícios usados por madeireiras para conseguir autorização para extrair árvores de madeira nobre em quantidade muito maior do que a permitida por lei e ocultar derrubadas em áreas protegidas, terras indígenas e invasões de áreas particulares, isto é, madeira roubada. O trabalho propõe, ainda, formas simples de reduzir as fraudes e alerta para o risco de a prática levar algumas espécies valiosas à extinção.

O golpe principal, segundo o estudo, é o das florestas imaginárias. Consiste em declarar no pedido de licenciamento da derrubada a existência de uma quantidade de árvores nobres muito maior do que a real em determinada área. Com isso, o madeireiro fica com uma espécie de “crédito” para extrair não só mais árvores do que seria o legal para uma determinada área quanto ainda “legalizar” madeira derrubada de outras áreas, nas quais o corte é proibido.

Foi detectada também a fraude dos gigantes invisíveis. Como a autorização é dada por volume de madeira, o fraudador declara a existência de árvores maiores do que fato existem. Como as existentes são menores, ele pode derrubar um número muito maior de árvores não só na área licenciada quanto em outras. Outra fraude é declarar gato por lebre. Pelo menos 13 espécies de menor valor comercial são declaradas como ipê, principal alvo dos madeireiros, o que cria a ilusão de que mais árvores dessa espécie podem ser derrubadas.

— Existe um padrão generalizado para obter licenças de forma fraudulenta na Amazônia. Por enquanto, é impossível estimar quantas licenças foram baseadas em fraude, mas o estudo sugere que a prática é disseminada — afirma um dos autores do estudo, Pedro Brancalion, da Universidade de São Paulo (USP).


Toco de árvore cortado em uma área de Floresta no Pará - Divulgação/USP


Os pesquisadores desvendaram o sistema de fraudes por meio da investigação da densidade de espécies de madeira nobre na Amazônia, com dados do projeto Radam, e da análise de 427 licenças para derrubada seletiva concedidas de 2012 a 2017 no Pará, o maior produtor de madeira da Amazônia. Estima-se que 44% de toda a madeira extraída de 2015 a 2016 no Pará era ilegal. O estado, destaca o estudo, tem apenas 55 fiscais para um território do tamanho do Peru. Por isso, a fraude se enraíza facilmente na fiscalização insuficiente e no sistema não padronizado de licenciamento, diz Brancalion.

Um madeireiro ilegal declara, por exemplo, que existem 100 ipês numa área, enquanto na realidade podem não haver nem dez. Por lei, ele teria que deixar 10% das árvores da espécie selecionada de pé. Ao obter uma licença para uma floresta fraudulenta, ele pode arrasar a área, ainda explorar outras e conseguir que a madeira esteja dentro da lei. Esse tipo de fraude ameaça acabar com árvores de madeiras nobres, destrói patrimônio público e traz prejuízos para os madeireiros que trabalham dentro da lei, destacam os autores do trabalho.

— As madeiras nobres valem ouro, devem realmente custar caro. Mas são vendidas abaixo do valor real por fraudadores, que as extraem em grande volume. É um prejuízo enorme para o país e para os empresários honestos, que sofrem concorrência desleal — frisa Brancalion.


Área de floresta desmatada do norte do Pará - Andre Penner / AP/15-09-2009

Para conseguir uma licença, concedida por autoridades estaduais, é preciso que uma empresa ou madeireiro respeite cotas (por volume de madeira e espécie) e restrições legais, como as de áreas de preservação e reservas legais.

— A madeira da Amazônia pode ser explorada, mas isso deve ser feito de forma sustentável. Há empresas sérias, mas elas são prejudicadas pela competição desleal de fraudadores — acrescenta Brancalion.

Hoje, só cerca de 3% da madeira da Amazônia é certificada, prática que exige que ela seja auditada por organização independente e reduz significativamente o risco de fraude. Esse processo, porém, torna a madeira mais cara e ela vai quase toda para a exportação. Segundo Saulo Souza, coautor do estudo da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), que acompanhou a vistoria do Ibama e de outras autoridades em seis áreas do Pará, as fraudes são fáceis de identificar.

— Vimos áreas em que foram declaradas supostos paraísos de ipês gigantes e não tinha árvore alguma da espécie. Os fraudadores apostam na impunidade — diz ele.

Os cientistas propõem no estudo um sistema automático de licenciamento em que o madeireiro teria que preencher um formulário online e padronizado. Todas as informações fornecidas por ele seriam automaticamente comparadas pelo sistema com as características da área e qualquer discrepância levaria de imediato o pedido para auditoria ou seria imediatamente negado.

— É bem fácil operacionalizar um sistema assim. Resta saber se há vontade política. Ele não eliminaria as fraudes, mas as tornaria muito mais difíceis e acabaria com a prática generalizada porque hoje é muito fácil fraudar e ficar impune — salienta Brancalion.

O coordenador de fiscalização do Ibama, Renê Luiz de Oliveira, cuja equipe foi acompanhada pelos pesquisadores em algumas operações de combate à exploração de madeira ilegal, espera que o estudo dê visibilidade à importância de se comprar madeira certificada. Ela diz que o recém-implantado Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais (Sinaflor) dará mais rigor e rapidez ao licenciamento e à gestão dos planos de manejo sustentável, já que é automático e padronizado.

— Mas a vistoria em campo continua a ser essencial. Sem ela, não temos garantia de que não haverá infrações.

IPÊ É O MAIOR AFETADO

O principal alvo dos fraudadores é o colossal ipê da Amazônia. Na Mata Atlântica, quase toda devastada, os ipês chamam a atenção pela beleza das flores, mas raramente se encontram exemplares de grande porte, porque a maioria das árvores é relativamente jovem. O ipê pode viver por séculos, mas se desenvolve com lentidão. Por isso, em partes intocadas da Amazônia, há árvores com mais de 500 anos e que alcançam 40 metros de altura.


Ipê rosa é um dos principais alvos de madeireiras para fazer pisos e decks - Analice Paron / Agência O Globo/05-07-2016


Veneráveis gigantes, elas vão literalmente para o chão, pois os ipês, por sua resistência, são procurados principalmente para fazer pisos e decks.

— É uma madeira valiosa, nobre, mas as árvores de grande porte podem desaparecer dentro de poucos anos devido a fraudes. O ipê amazônico está muito ameaçado — observa Edson Vidal, também da Esalq e coautor do estudo.

O ipê, segundo os pesquisadores, corre o risco de se tornar o novo mogno, espécie conhecida por ter sido quase exterminada. Foi vítima da cobiça por sua madeira nobre. Como o ipê, o mogno vive séculos e cresce muito lentamente. O mogno já foi o senhor da Amazônia, mas o abate sem controle quase o levou à extinção e hoje o corte é proibido. Ainda assim, são raros os gigantes, explica Vidal.

O ipê cresce ainda mais lentamente do que o mogno e os cientistas dizem que pode já ter chegado a hora de decretar uma moratória para a espécie. Segundo Vidal, após o corte se leva 30 anos para recuperar 4% da população da espécie e 120 anos para se chegar a 20%.

Fonte: O Globo











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