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domingo, 29 de março de 2015

Viagem ao passado ‘animal’




Livro revela quão profunda foi a transformação da relação de homens com animais a partir do século XVI

por Flávia Milhorance

RIO - “Eles não lavram nem criam. Nem há aqui nem boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimária que seja costumada ao viver dos homens”. Não fosse pelo português arcaico, o trecho poderia perfeitamente refletir o estranhamento sentido por nós, brasileiros, se nos deparássemos com uma população que não tem em sua região pastos ou galinheiros, de tão presentes que estão no nosso cotidiano. Mas o comentário foi extraído da carta de Pero Vaz de Caminha, de 1500, e retrata a realidade de indígenas na chegada dos portugueses ao Brasil.

Hoje naturalizadas, boa parte dessas espécies “utilitárias” para o homem foi trazida pelos europeus. Assim como seus modos de uso. E o contrário é igualmente verdadeiro. Papagaios, araras, periquitos, macacos, porcos do mato, quatis e até mesmo serpentes e tantos outros animais eram recolhidos das florestas tropicais e criados nas aldeias como mascotes. Hábito que foi prontamente adotado pelos europeus com suas espécies nativas. Esta e outras curiosidades históricas compõem o livro “Representações da fauna no Brasil - Séculos XVI-XX” (Andrea Jakobsson Estúdio Editorial), lançado esta semana no Rio.

MUDANÇA DE PAISAGEM E RELAÇÕES

Organizado pela historiadora Lorelai Kury, o livro traz seis ensaios que mostram o quão profundas foram as mudanças na paisagem natural e nas relações entre homens e animais a partir da colonização das Américas. Se por um lado os europeus costumavam apenas usufruir do que os animais pudessem oferecer, os indígenas os tratavam como se fossem parte da família, como explica Felipe Vander Velden, autor de um dos capítulos e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos.

— Com a progressiva extinção das sociedades indígenas, fomos adotando no Brasil os hábitos europeus de uso dos animais. Mas um contraponto disto, apontado por alguns historiadores, é que o modo como a Europa trata os animais de estimação foi inspirado pelos indígenas — comenta Velden.

É verdade que gatos e cachorros convivem com o homem há milênios, e provavelmente a domesticação deles começou pela Europa. Mas o professor explica que, mesmo nesses casos, não existia a noção de animal doméstico que atualmente prevalece:

— Até a descoberta das Américas, o gato servia para caçar ratos, enquanto que o cachorro era usado no pastoreiro, no transporte, em tarefas diárias nas cidades ou no campo na Europa. Esta intimidade que temos hoje com nossos animais de estimação foi aprendida a partir do período da colonização.

Desde 2002, Velden estuda os Caritianas, um grupo indígena que habita o Norte de Rondônia. Ele conta que, até hoje, animais selvagens, sobretudo filhotes, são retirados das matas para serem tratados como integrantes da aldeia.

— Se eles encontram um filhote, certamente levam para aldeia e tentam domesticá-lo. Na maioria das vezes, não dá — comenta o professor, lembrando experiências com uma jiboia, um cachorro do mato e um peixe elétrico. — O sujeito, certa vez, pescou a espécie e levou para sua oca. Cavou um buraco e tentou criá-lo ali. Vez ou outra levava um choque. Depois, não sei que fim levou.

Enquanto isto, não são raras as dificuldades que eles têm no pastoreio:

— É curioso como os projetos de criação animal, como o de gado, acabam falhando nas aldeias. É raro que os animais criados nesses locais sejam abatidos para servir de alimento — explica.

Eles acabam adotados, segundo Velden. O mesmo vale para galinhas e cachorros. Elas até servem de alimento, mas só as compradas no supermercado. Aquelas que transitam pela aldeia têm dono. No caso dos cães, os filhotes são bem cuidados e enfeitam as ocas. São tão familiares quanto seus próprios bebês e crianças. Mas quando crescem precisam aprender a caçar e sobreviver, como adultos responsáveis. São como indivíduos.

O AVANÇO DO IMPERIALISMO BIOLÓGICO

Os indígenas podem até ter experiências malsucedidas com a criação de gado, mas fora das aldeias os bois transformaram radicalmente a paisagem brasileira, e o animal continua a avançar por boa parte do país. Além do uso da carne e do couro, o pasto há séculos representa a posse da terra e é ferramenta para o avanço da conquista territorial:

— Terra com gado é terra com dono — exemplifica Velden, sugerindo que este seria um exemplo do que se conhece por “imperialismo biológico”. — É a ideia de que parte importante do processo de colonização ocorre através da biota trazida para cá. O termo foi cunhado para colônias de clima temperado, como o europeu. Mas é válido pensar como a paisagem foi transformada com espécies invasoras.

SERES MÍSTICOS NA COLÔNIA BRASILEIRA

Além da transformação das relações e da paisagem natural, os animais do período colonial mudaram a forma de relatar e fazer ciência na Europa. À época da chegada dos colonizadores às Américas, macacos, tatus, papagaios e preguiças foram textualmente descritos pelos viajantes aos pesquisadores que permaneciam no continente europeu. A abundância e a diversidade de espécies novas eram tamanhas que deram margem à invenção de seres míticos.

— A ciência do século XVI tem espaço para os seres maravilhosos, sobretudo devido à influência da religiosidade sobre a produção de conhecimento na época — acrescenta o historiador Bruno Martins Boto Leite, autor de um dos ensaios do livro e professor de Filosofia e História da Ciência na Universidade Federal do Oeste da Bahia. — Esta relação entre divino e ciência só vai se romper com a Revolução Francesa, quando se quebra a relação com o clericalismo. A ciência passa a ser laica.

Até então, eram descritos desde “bichos de bico desproporcionalmente maior que o corpo” — o tucano — até as incríveis sereias e os monstruosos animais marinhos — como o ipupiara. Durante o século XVI foi acatada a ideia da existência do “demônio d’água”, que tomou diferentes formas em desenhos da época. Num dos relatos ele tinha “quinze palmos de comprido e semeado de cabelos pelo corpo, e no focinho tinha umas sedas mui grandes como bigodes”.

Era difícil, a partir de relatos e desenhos, saber o que existia de fato. Por isso, a partir do século XVII, pela constante crítica à narrativa do “ouvir dizer” das espécies e pela necessidade de colocá-las à prova, alguns pesquisadores se propuseram a checar a existência do que era ou não real.

— Se no início o predominante eram as narrativas de viagem, os relatos e as cartas, num segundo momento os cientistas queriam ver o objeto — afirma o pesquisador, contando que começaram a se proliferar os gabinetes de curiosidades, museus e hortos, cheios de animais retirados da colônia. — E eles começaram a apurar os instrumentos de observação, não ficavam mais tão atrelados à descrição textual, mas começavam a analisar e fazer experimentações científicas, de uma maneira parecida com a que conhecemos hoje.

Fonte: O Globo








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