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terça-feira, 17 de abril de 2012

João Paulo Capobianco: "O governo é pré-histórico na questão ambiental"

PESSIMISMO: O ambientalista Capobianco, em seu escritório em São Paulo. Ele se diz preocupado com o papel do Brasil na conferência Rio+20, que será realizada em junho (Foto: Letícia Moreira/ÉPOCA)

O ex-secretário-executivo do ministério do Meio Ambiente critica o governo Dilma, diz que a legislação está perdendo força e prevê aumento do desmatamento

RICARDO MENDONÇA

Há alguns dias, importantes organizações da área ambiental divulgaram um documento com severas críticas ao primeiro ano do governo Dilma Rousseff no setor. Instituto Socioambiental, Fundação SOS Mata Atlântica e WWF, entre outras, classificam o atual período como o de “maior retrocesso da agenda socioambiental desde o fim da ditadura”. A acusação é endossada pelo biólogo e consultor João Paulo Capobianco, um dos mais respeitados ambientalistas do país. No governo Lula, Capobianco ocupou o segundo cargo mais importante do Ministério do Meio Ambiente, o de secretário-executivo. Saiu junto com a ministra Marina Silva e depois participou de sua campanha pela Presidência. Nesta entrevista, ele explica porque avalia tão mal os primeiros atos de Dilma no setor.

ÉPOCA – As organizações que militam na área de meio ambiente classificaram o primeiro ano do governo Dilma como “o maior retrocesso da agenda socioambiental desde o fim da ditadura”. O senhor concorda com isso?

João Paulo Capobianco – Concordo completamente. A agenda que envolve meio ambiente e a questão social do ponto de vista dos direitos de minorias, como índios e quilombolas, tem evoluído desde o fim da ditadura militar. É uma evolução permanente. Claro que as coisas nem sempre andaram como gostaríamos. A Lei da Mata Atlântica demorou 14 anos para ser aprovada. A Lei de Crimes Ambientais demorou 12 anos. Foi um conjunto de avanços sempre muito morosos. Mas foi uma agenda crescente. Nós não tivemos nesse período nenhum retrocesso na legislação. Tivemos demoras, dificuldades de implementação, mas inversão nós nunca tivemos. Estamos tendo agora. São modificações na legislação por iniciativa ou omissão do Executivo. Um exemplo é esse novo Código Florestal.

ÉPOCA – A aprovação dos transgênicos no governo Lula não foi considerado um retrocesso pelo movimento ambientalista?

Capobianco – Ali foi diferente porque não havia uma legislação anterior para tratar desse assunto. Foi assim: na época do presidente Fernando Henrique Cardoso o governo fazia vista grossa e o transgênico cresceu de forma descontrolada. Aquilo estava sendo usado sem legislação, sem nenhum procedimento de biosegurança. Então no começo do governo Lula nós envolvemos oito ministérios para propor uma lei. A lei que foi enviada pelo governo para o Congresso foi elaborada em acordo com o Ministério do Meio Ambiente. Na Câmara, o deputado Aldo Rebelo alterou completamente o texto, mas o governo reagiu e tivemos uma grande vitória. No Senado, as mudanças voltaram e lá o governo não agiu acabou perdendo. Foi uma perda, sim. Mas é diferente da situação atual porque a questão do transgênico não era algo que já estivesse ajustado na legislação e andou para trás.

ÉPOCA – Então nunca houve retrocesso?

Capobianco – Na época do governo Collor (1990-1992) houve uma tentativa. Quiseram fazer uma consolidação da legislação ambiental. De fato, a legislação ambiental tem um leque muito grande de resoluções, leis, decretos, normas constitucionais. E quando isso começou a ganhar forma, ficou claro que, na verdade, queriam aproveitar a oportunidade para eliminar vários avanços. Naquele momento as organizações todas se mobilizaram e o governo retirou a proposta. Tivemos também a iniciativa do Congresso de modificar o Código Florestal em 2000. Isso foi até 2001, 2002, o famoso Relatório Micheletto (do deputado Moacir Micheletto), que quase foi para votação em plenário com muita chance de ganhar. Mas foi retirado pelo governo. O governo bancou (a retirada da proposta) e depois editou uma Medida Provisória para resolver alguns problemas do Código. Então o que acontecia claramente eram tentativas de modificar a legislação ambiental. Isso ocorria. Mas ou o governo atuava para ajustá-las, ou impedia o avanço dessas tentativas no Congresso. O que está acontecendo agora é o oposto disso.

ÉPOCA - Os analistas políticos classificam a aprovação do novo Código Florestal na Câmara como a maior derrota política do governo Dilma no Congresso até aqui. Se o governo perdeu, como é possível responsabilizá-lo pelo mérito? Por uma medida que foi aprovada a sua revelia?

Capobianco – O governo Dilma possui a maior base de apoio da história democrática. Nenhum presidente da República teve uma base como a atual. E, objetivamente, o governo não operou essa base. Ele opera essa base em todos os projetos que lhe interessam. O governo não atuou de forma adequada em relação ao Código Florestal, não ouviu os alarmes e as diversas manifestações preocupadas com o assunto. Quando o governo percebeu que seria criado um problema político, resolveu agir. Só que muito tardiamente, o relatório já estava pronto. O relatório foi costurado pelo deputado Aldo Rebelo, que é um político com muita experiência legislativa, foi ministro, presidente da Câmara. O governo tentou barrar e não conseguiu. Então, de fato, o governo perdeu. Mas ele perdeu após uma letargia enorme, uma omissão muito grande, permitindo, durante mais de um ano, que esse projeto fosse construído.

ÉPOCA – O senhor disse que o governo só tentou reagir contra o novo Código Florestal porque percebeu que seria criado um problema político. Que problema seria esse?

Capobianco – Na campanha de 2010, a presidente Dilma Rousseff se comprometeu, de próprio punho, em vetar qualquer dispositivo que implicasse em anistia, estímulo ao desmatamento ou redução das áreas de preservação permanente. Quando ficou claro que essa proposta de Código Florestal continha esses elementos, viram que iria sobrar para ela. Além disso, o movimento contrário ao Código cresceu. Um conjunto muito grande de formadores de opinião foi à Presidência da República alertar sobre os retrocessos do Código.

ÉPOCA – Mas o senhor diria que a essa letargia do governo contra o Código foi proposital?

Capobianco – Certamente. Dizer que o governo tem uma visão anti-ambiental talvez seja muito forte. Mas uma coisa é evidente: a sensibilidade do atual governo com a questão ambiental é mínima. Houve uma omissão completa do governo nesse processo, o que é inadmissível, pois você tem no governo pelo menos um ministério, no mínimo um, que é o do Meio Ambiente, que tem como uma das funções institucionais acompanhar os processos legislativos e, em nome do governo, atuar no Congresso. Ele não fez isso. O Ministério se omitiu, o governo como um todo se omitiu. E quando perceberam que o dano para a imagem do governo seria importante, resolveram entrar, mas de forma atabalhoada, desorganizada. Perdeu.

ÉPOCA – E no Senado, como foi a postura do governo?

Capobianco – No Senado, sim, o governo agiu de forma objetivamente anti-ambiental. Depois de perder na Câmara, o governo saiu dizendo assim: “no Senado nós vamos reverter isso”. Só que o primeiro ato do governo no Senado foi permitir a escolha do mesmo relator em três comissões, uma coisa inédita. A matéria precisa passar em quatro comissões: Constituição e Justiça, que é obrigatória, Agricultura, Ciência e Tecnologia e Meio Ambiente. O governo tem papel fundamental nesse processo, é um ente extremamente forte. E aí ele permitiu que o projeto fosse analisado nas comissões de Constituição e Justiça, Agricultura e Ciência e Tecnologia pelo mesmo relator. Quem foi esse relator? O senador Luiz Henrique da Silveira (PMDB), que, enquanto governador de Santa Catarina, aprovou um Código Ambiental local que é o único contrário ao Código Florestal nacional. O Código de Santa Catarina é mais permissivo e desrespeita frontalmente o Código Florestal nacional. É objeto de uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) no Supremo Tribunal Federal. Então o governo aceita o Luiz Henrique em três comissões. Três. Em função do seu currículo, era a pessoa mais inadequada para isso.

ÉPOCA – A outra comissão foi para o senador Jorge Viana, do PT do Acre.

Capobianco – Que foi a nossa grande decepção. Esperava-se que ele fizesse um relatório mais correto, mas ele não fez. Ele fez um praticamente idêntico ao do senador Luiz Henrique.

ÉPOCA – Qual a diferença entre os textos da Câmara e do Senado?

Capobianco – O relatório do Senado é, na sua estrutura, igualzinho ao da Câmara. É um projeto melhor, mais bem organizado. É melhor como peça legal. Mas para o meio ambiente é igual. Ele continua com a anistia para quem desmatou, mantém a redução das áreas de preservação permanente, mantém a redução da reserva legal (que cada propriedade é obrigada a ter) e estimula novos desmatamentos.

ÉPOCA – Estimula como, objetivamente?

Capobianco – Primeiro, pela anistia para quem desmatou. Cria uma sensação de impunidade, evidentemente. Também porque reduz o cálculo das áreas de preservação permanente. O que é isso? São áreas extremamente frágeis que são protegidas pela legislação desde 1934: topo de morro, mata ciliar, encostas. Hoje, para você calcular a área de preservação na beira de rio, você tem de contar a partir da maior cheia sazonal. Pegue um rio de planície na Amazônia, no Pantanal ou na Mata Atlântica litorânea, por exemplo. Se você olhar para o leito regular, pode ter 12 metros, 15 metros. Mas todo ano, na cheia, ele sai dessa margem e atinge até 100 metros. Hoje, você calcula a área de proteção a partir desse limite maior, de 100 metros. Não estou falando da grande cheia excepcional, que pode ocorrer eventualmente, mas da cheia sazonal, que ocorre todo ano. O que fizeram? No projeto do novo Código eles colocaram que você deve calcular a área de proteção a partir do leito regular. Significa que vai reduzir brutalmente a áreas de preservação. Na Amazônia, igapós e igarapés perdem, ficam todos de fora. No Pantanal será uma tragédia.

ÉPOCA – A legislação não precisaria de nenhum retoque?

Capobianco – Precisa. Há um pressuposto que todo mundo concorda: você precisa criar oportunidades para regularizar as propriedades que estão irregulares. Todo mundo concorda com isso. Mas como fazer? Para quem atua na área ambiental, resolver isso significa criar incentivos, facilidades e condições para estimular a recuperação das áreas. O que a bancada ruralista faz? Eles querem eliminar a recuperação. Então você parte de um consenso, mas com pontos de vista totalmente diferentes para a solução.

ÉPOCA – Qual tem sido a estratégia do governo?

Capobianco - No Senado o governo atuou de forma clara. Ali ele expôs, de forma objetiva, qual é a sua visão. É por um código que faz anistia, estimula desmatamento e reduz proteção. Quando esse projeto foi aprovado no Senado, tentaram passar para a sociedade que havia um consenso. “Ah, resolvemos os problemas da Câmara, os absurdos da Câmara”. Houve uma contra-informação importante. Aí as informações começaram a circular, as organizações fizeram uma discussão e ficou provado que aquilo não era verdade. Ficou claro que, na sua essência, o projeto do Senado era tão ruim quanto o da Câmara. E aí o governo montou o que a Marina Silva muito bem chamou de telequete, aquela luta livre falsa, marmelada, em que os dois caras ficam se batendo e se jogando no chão. O governo permitiu que o projeto, ao voltar para a Câmara, fosse relatado pelo deputado ruralista Paulo Piau (PMDB-MG). Quem é Paulo Piau? Ele foi o autor das piores emendas no início, quando a matéria estava na Câmara. Na nossa avaliação o governo estimulou que fosse o Paulo Piau. Para quê? É para acontecer exatamente isso que está acontecendo. É para que ele modifique o texto novamente, recuse várias mudanças do Senado, encha o texto de retrocessos e retorne com as piores coisas que tinha antes. Aí o governo entra com tudo, obriga a base a votar o texto do Senado e vende para a sociedade a ideia de que salvou o Código Florestal. Essa foi a jogada. Mas isso foi denunciado e agora virou um problema. O fato concreto é que essa questão do Código é o exemplo mais acabado daquilo que nós estamos chamado, no governo Dilma, de maior retrocesso desde a ditadura.

ÉPOCA – O que mais as organizações classificam como retrocesso?

Capobianco - A Lei Complementar 140. Esse era um projeto que visava organizar as atribuições das diferentes esferas da União para tornar os processos de licenciamento mais eficientes. Era um projeto ambiental na sua origem, nós trabalhamos nele. O que a Câmara fez, com o beneplácito do governo, foi aproveitar esse projeto para reduzir o papel do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) e para reduzir o papel do Ibama. Virou um projeto anti-ambiental. O governo também deixou andar, não colocou sua base para impedir a aprovação. O que a gente pensou? “Bem, o governo vai vetar”. Mas não vetou, sancionou. Então ali ficou patente que não houve oposição ao projeto.

ÉPOCA - O desmatamento na Amazônia Legal em 2011 foi de 6.238 quilômetros quadrados. É o menor índice da série histórica, 11% menor que o de 2010. Não é uma boa notícia?

Capobianco – Claro que é. A redução do desmatamento foi uma decisão política, tomada em 2004 com um plano interministerial para essa finalidade. Alguns dizem que o desmatamento caiu no governo Lula porque teve a queda dos preços das commodities, a soja perdeu preço e outros fatores. Eu sempre digo o seguinte: é verdade, o governo soube usar um ambiente favorável para apertar as políticas para redução de desmatamento. Foram criados 23 milhões de hectares de unidades de conservação na Amazônia nas áreas de expansão do desmatamento; houve um processo de cancelamento de títulos de milhões de hectares, pois havia uma grilagem monumental; teve uma ação pela primeira vez integrada com Exército, Ibama e Polícia Federal, que atuou de forma extremamente forte; teve a modificação do sistema de monitoramento por satélite, que era anual a passou a ser em tempo real. Foi, enfim, uma série de medidas. Agora, a base fundamental para atuação do governo foi sempre o Código Florestal. O Código é que permitia imputar ao proprietário a obrigação da proteção, pois ele dizia “em área de floresta, na Amazônia, você só pode desmatar 20%”. Antes ele era letra morta. O governo resolveu implementar isso aí. Agora tem a inércia. Ela é muito grande. Você não aumenta o desmatamento repentinamente. Assim como não reduz repentinamente. Então o atual governo é herdeiro desse processo.

ÉPOCA – E o que vai acontecer a partir de agora?

Capobianco – Antes, toda a postura do governo federal era de preservação, de implantação do Código, de controle. Qual é a política do atual governo? Permitir que um novo Código avance, redução de proteção, anistia para quem desmatou irregularmente, uma série de sinais completamente contraditórios em relação ao que estava sendo feito desde 2004. Então eu diria que a tendência é de um retorno do desmatamento. Essa é a perspectiva. Você está mudando a legislação e está passando um sinal para a sociedade de menos controle, de menor valorização do tema. Eu acredito que a redução do desmatamento, que é a grande vitrine do governo, está condenada. Está condenada se o governo aprovar esse novo Código Florestal.

ÉPOCA – Quando isso será percebido no índice? Dá para prever?

Capobianco – Como eu disse, a inércia é grande. Mas no ano passado você já teve alguns meses atípicos. Teve uma explosão do desmatamento e o governo foi obrigado a ir para campo e correr com operações tremendamente para tentar segurar. Segurou, foi importante. Agora, como você vai segurar isso se mudar a legislação? Como vai segurar isso se quem desmatou a reserva legal não será punido? Eu preservei, meu vizinho desmatou e agora tudo bem? Eu mantive a área de preservação permanente, mas esse cara passou por mim, riu da minha cara e desmatou a área dele. Agora vem a lei e anistia o sujeito? E eu que preservei? É um sinal totalmente equivocado, que jamais o governo poderia passar para a sociedade.

ÉPOCA – O senhor acredita na possibilidade de veto do novo Código Florestal por parte da Presidência?

Capobianco – Veto parcial não adianta. Há uma armadilha. O projeto foi escrito de uma forma para que vetos parciais ficassem inviáveis. Ela (Dilma) pode vetar alguns dispositivos, algumas coisinhas, mas a estrutura não dá para vetar. Um exemplo é essa questão do cálculo da área de preservação permanente: isso está no caput do parágrafo de todo o artigo que define a área de proteção permanente. Então se vetar isso, veta tudo, toda a proteção. O texto foi feito de uma forma para que você não possa vetar. Assim, do meu ponto de vista, não existe possibilidade do veto parcial. Mesmo que ela vete alguns pontos, se vetar, não vai resolver o problema estrutural.

ÉPOCA – É essa avaliação que está por trás da campanha que as entidades estão fazendo pelo veto total?

Capobianco – Sim. Tem de vetar tudo e criar um outro projeto. Na verdade, o certo seria ter um projeto com origem no Executivo. E não permitir que a bancada ruralista fizesse um projeto que prosperasse.

ÉPOCA – E Belo Monte, a outra grande polêmica do governo Dilma?

Capobianco – Belo Monte não é uma polêmica. Não vejo polêmica ali. O problema de Belo Monte é o processo de licenciamento que não seguiu a tramitação adequada. O que um licenciamento ambiental obrigatoriamente tem de fazer? Tem de identificar todos os impactos e avaliar se esses impactos são mitigáveis ou não. Tem empreendimentos em que os impactos são tão absurdos, que não tem como resolver. Belo Monte está nessa linha. Mas vamos supor que, no caso de Belo Monte, tivesse como resolver. O que aconteceu? O processo não teve todos os impactos adequadamente levantados, as comunidades afetadas não foram adequadamente ouvidas, como exige a lei, e as medidas mitigadoras não foram adequadamente planejadas e implementadas. Então você tem um processo onde prevaleceu uma decisão política de licenciar e fazer essa obra de qualquer forma. Todo licenciamento ambiental foi tratado como um ônus necessário só porque a lei obriga. Não foi tratado como uma oportunidade para você, de fato, equacionar todos os problemas e compor um acordo sobre o empreendimento com as populações afetadas. Belo Monte foi um processo goela abaixo. E agora estão aparecendo os problemas.

ÉPOCA – Se o problema está na condução do processo, não seria mais fácil fazer tudo certinho, até para evitar os prejuízos com todos esses conflitos? Por que, na sua opinião, o governo faz dessa forma?

Capobianco – Minha interpretação: há uma concepção no atual governo de que a questão ambiental é secundária, é menor, ela não justificaria. Então se você tem essa visão, essa ideia de que a questão ambiental é secundária, qualquer discussão vira um negócio... Aí alguém diz: “é um absurdo esse processo de licenciamento, demora anos”. Sim. É assim. Você tem obras em outros países relevantes que demoram dez anos para licenciar. Porque é um processo onde você deve, de fato, esgotar o problema. Você tem de resolver o problema. Não adianta você achar que é uma questão cujo objetivo é atrasar a obra. O objetivo é o seguinte: você tem de resolver o problema. Só que para isso você tem de ter compromisso. E considerar que esses são problemas de fato. Olha só, voltando à linha dos retrocessos: o governo editou um conjunto de portarias para normatizar o licenciamento ambiental. Uma delas define uma quilometragem para dizer se a comunidade é afetada ou não pela obra. Então diz lá: “comunidades até X quilômetros são afetadas e precisam ser ouvidas”. Mas e a comunidade que estiver X quilômetros mais um, não será ouvida? Não, não será ouvida.

ÉPOCA – Mas precisa ter um critério objetivo, não?

Capobianco – Claro. Mas qual tem de ser esse critério? Antes, as comunidades que comprovadamente eram afetadas, através de estudos ambientais, laudos, eram ouvidas. Os laudos diziam: “olha, essa comunidade será afetada por A, B ou C problema”, independentemente se estiver a um quilômetro ou a 20 quilômetros. Outro exemplo incrível: quando você tem um licenciamento, vários órgão têm de opinar. Se afeta terra indígena, a Funai tem de opinar; se afeta patrimônio arqueológico, o Iphan tem de opinar; se afeta área de conservação, o Instituto Chico Mendes tem de opinar; e o Ibama tem de opinar sobre tudo. Aí o órgão demora para opinar. É um problema. Por que o órgão está demorando para opinar? É corpo mole? É oposição ao empreendimento? Mas pode ser que o órgão esteja desaparelhado, não consegue. O que o governo fez? Deu um prazo: se o órgão não opinar naquele prazo, significa que ele aprovou o empreendimento por decurso de prazo. É uma coisa absurda. Criou-se o licenciamento por decurso de prazo. É como se fosse por WO. Não importa se foi uma dificuldade para consultar a comunidade -algumas são isoladas, de dificílimo acesso-, ou se foi incapacidade física para atingir o local. O Brasil não é uma Suíça em que você pega o carro, anda um pouco e encontra qualquer comunidade. Estamos falando de Amazônia, onde estão as grandes obras. Para você consultar uma comunidade indígena, muitas vezes você precisa entrar com avião, barco, jipe, são dificuldades inerentes a um país continental como o nosso.

ÉPOCA – Mas não dá para não ter prazo algum, certo? Vai ficar solto, sem prazo?

Capobianco – Mas já existe prazo. A lei prevê prazo, claro. O que eles fizeram foi dizer que se não cumprir, acabou tudo, está aprovado. O que o governo deveria fazer? Quando há problema de atraso, deveria chamar o órgão e perguntar. Por que atrasou? O que aconteceu? Qual é a justificativa para não ter feito essa manifestação no prazo? Se o órgão não tiver justificativa, faça a ação necessária, substitua o executivo. Mas não pode dizer “se não cumpriu o prazo, azar o seu”. Nesse caso, o que o governo está privilegiando? Não está privilegiando o conteúdo, mas o prazo. Que prazo? O prazo da obra. A pergunta é: o governo está privilegiando a qualidade do empreendimento ou está privilegiando a agenda do empreendedor? No governo Dilma, a decisão, claramente, é privilegiar a agenda do empreendedor. Faz isso em detrimento da questão ambiental, das populações indígenas, das comunidades tradicionais.

ÉPOCA – Como o senhor avalia a questão das áreas de proteção?

Capobianco – O governo não criou nenhum hectare de área de proteção ambiental. Ao contrário. Pela primeira vez desde a Constituição um governo reduz a área protegida. Reduziu na Amazônia para fazer hidrelétricas no rio Tapajós. Pode reduzir? Legalmente pode, mas você compensa com outra área para não ter perda. Isso é comum. Para isso é preciso fazer um projeto de lei e encaminhá-lo para o Congresso, onde tem audiência pública, debate, consultas, tem o contraditório. O que o governo fez agora? Fez por Medida Provisória. É o ápice da loucura, porque é uma decisão unilateral do poder Executivo. Qual é a urgência e relevância de reduzir um parque nacional para o canteiro de uma obra que não nem sequer foi licenciada?

ÉPOCA – Qual é?

Capobianco – Essa história da redução do parque para fazer hidrelétrica no rio Tapajós é reveladora da visão do atual governo. Ele não submete a obra ao licenciamento, nem sabe se a obra vai ser aprovada do ponto de vista ambiental, mas ele já reduziu o parque. Já provocou um dano permanente. Qual é a leitura disso? A leitura é que o governo já decidiu que vai fazer a hidrelétrica, que o licenciamento é favas contadas, virá de qualquer jeito. Eu não diria que é uma postura anti-ambiental. Mas é uma visão em que a questão ambiental está em 14º plano.

ÉPOCA – A presidente Dilma disse que as pessoas contrárias a hidrelétricas na Amazônia vivem num estado de “fantasia”.

Capobianco – Fantasia é viver num mundo onde você acha que apenas as hidrelétricas vão responder à questão energética. Se ela tivesse dito que a energia eólica nunca será capaz de suprir a demanda crescente, todos nós concordaríamos. Porque não é nem a eólica, nem a solar, nem a hidrelétrica, nem a nuclear e nem a térmica que vai, individualmente, suprir a demanda. Nenhum país tem mais isso. Todos, a começar pela China, que é o mais emblemático, passando pelos Estados Unidos e pela a Europa inteira, estão investindo pesadamente nas fontes múltiplas. A questão é o conjunto atuando sinergicamente. Na eólica, o Brasil tem potencial enorme. Se utilizasse tudo, teria mais que toda a energia somada que o Brasil gera hoje. Então a grande fantasia é dela, achando que vai convencer os líderes que estarão aqui na Rio+20 de que essa tese de dar ênfase só na hidrelétrica é viável. Ela acha que alguém vai acreditar nisso? Todos já abandonaram essa tese.

ÉPOCA – E o Ministério do Meio Ambiente, como tem agido?

Capobianco – Para nossa surpresa, é a primeira vez que a gente vê uma operação de desmonte da legislação, de fragilização dos órgãos ambientais, sem que o ministro se insurja contra. É a primeira vez, desde a época do Paulo Nogueira Neto, ainda no governo militar. Nós tivemos vários episódios no passado em que o ministro do Meio Ambiente tomou a iniciativa, se manifestou, ameaçou se demitir. Faziam o que a gente chama de contraponto no centro do governo. Qual é o papel do ministro do Meio Ambiente dentro governo? É fazer a crítica interna, inclusive em benefício do próprio governo.

ÉPOCA – Mas o senhor tem essa informação de dentro? A ministra Izabella Teixeira faz essas críticas internas e é derrotada ou nem faz? O senhor está dizendo que ela não faz.

Capobianco – Ela se pronuncia na imprensa defendendo essas medidas. Ela defende o Código Florestal do Senado, diz que ele é excelente, que vai promover o maior programa de recuperação florestal do mundo. Não sei de onde tirou isso. Ela não está posicionada fazendo o contraponto. Ela está apoiando institucionalmente essas coisas.

ÉPOCA - Depois de surpreender o país com 20 milhões de votos em 2010, a ex-senadora Marina Silva optou pela neutralidade no segundo turno. Se ela tivesse apoiado Dilma no segundo turno, naquela fase decisiva, não teria agora melhores condições políticas para influenciar o governo nesses assuntos?

Capobianco – Analisar fatos passados à luz dos atuais dá errado. O que eu posso dizer é o seguinte: a campanha Marina Silva trabalhou verdadeiramente a questão da defesa de uma proposta de governo, apesar do partido. Foi uma campanha de propostas. A mensagem era “eu não vou para o embate, vou para o debate”. E os 20 milhões de votos foram dados a ela, na minha opinião, porque ela manteve uma coerência, em todo o processo, de insistir nisso, de dizer que o Brasil precisava e merecia uma discussão de propostas. Então quando a campanha acabou, qual foi a avaliação? Ela tem uma capacidade muito grande de sintetizar. Perguntaram o que ela iria fazer com os 20 milhões de votos. Ela respondeu assim: “Eu não tenho votos, quem tem voto é o eleitor. Ele votou em mim e em uma proposta que incluía uma crítica aos dois adversários”. A Marina fez uma crítica permanente aos dois candidatos, o Serra e a Dilma, dizendo que eles tinham desrespeitado a eleição. Fizeram um embate entre eles, uma baixaria, em detrimento ao eleitor. Então como é que ela poderia apoiar um ou outro depois daquilo?

ÉPOCA – Os dois queriam apoio. Não era o momento político ideal para amarrar uma pauta?

Capobianco – Nós colocamos a pauta. Dissemos “não, não tem apoio, mas vamos fazer um documento com questões fundamentais e apresentá-lo para os dois, vamos ver como eles respondem”. A Dilma respondeu muito corretamente. Foi aí que ela disse que vetaria qualquer iniciativa que implicasse em anistia, redução de proteção ou incentivo ao desmatamento. O Serra respondeu de maneira mais evasiva. Aliás, nem respondeu, foi o Sérgio Guerra (presidente do PSDB) que respondeu. O que nós fizemos? Colocamos no site as duas manifestações. Ficou claro que a Dilma assumiu aqueles compromissos. Acho que foi uma decisão política perfeitamente correta. Você pergunta agora se foi um erro da Marina. Não dá para avaliar assim. E se a Marina tivesse apoiado a Dilma naquele momento e agora estivesse acontecendo tudo isso aí do mesmo jeito, o que você me perguntaria? Você iria dizer assim: “Não foi um erro apoiar a Dilma? Esse apoio não acabou legitimando esse desmonte no setor de meio ambiente?” A Marina fez o certo. Ela preservou sua credibilidade e agora não tem responsabilidade por isso que está sendo feito.

ÉPOCA - O que podemos esperar do Brasil na Rio+20?

Capobianco – É mais um bom exemplo da mudança da perspectiva do governo no Brasil. Na Rio 92 eu era membro, participei de todas as reuniões de organização, de toda discussão da agenda, de todas as reuniões interministeriais. Também participei da Rio+5 e da Rio+10. Digo o seguinte: é surpreendente como a Rio+20 está virando o anti, do anti, do anti. A Rio 92 era diferente. É a ONU que coordena tudo, mas o país sede tem uma importância enorme nesse tipo de evento. A receptividade dele, a forma como ele interage com a agenda é decisiva para tornar o ambiente favorável ao avanço. Da mesma forma, você não pode fazer uma conferência para discutir direitos humanos num país que desrespeita direitos humanos. Por que não pode? Ora, qual é o ambiente para a discussão? Na Rio 92 o Brasil agiu com extrema competência, apoiou as convenções, apoiou o debate ambiental, teve iniciativas internas, criou a terra Yanomami, fechou o Serra do Cachimbo, uma série de medidas. Foi pró-ativo. O Brasil favoreceu a agenda ambiental no processo da Rio 92. E criou um ambiente positivo apesar dos problemas políticos daquela época, impeachment do Collor e tudo aquilo. Tanto foi positivo que a Rio+20 agora é novamente no Brasil. Mas como é que o Brasil recebe a Rio+20 agora? Primeiro, uma desorganização, um despreparo para a recepção. Segundo, uma agenda totalmente anti-ambiental. O que o Brasil fez de relevante na área ambiental nos últimos meses? Terceiro: o que o Brasil está fazendo em relação à agenda do evento?

ÉPOCA – O que está fazendo?

Capobianco - Pegue a entrevista do responsável pela Rio+20 e leia. Ele diz assim: “vocês estão equivocados, a questão ambiental não é só meio ambiente strictu senso, tem de ter o econômico e o social”. É verdade, mas achar que a Bolsa Família é o grande exemplo do Brasil para o mundo nisso? É o grande exemplo social, claro. Mas do ponto de vista ambiental é uma relação muito tênue. A Bolsa Família deve entrar no debate, sim. Mas esse é o tema principal do Brasil? Acho que não.

ÉPOCA – Qual deveria ser a questão central?

Capobianco – A questão central da Rio+20 é a crise ambiental. Temos clareza dos riscos, indicadores precisos, mas existe um problema de implementação da agenda das grandes convenções climáticas. A Rio+20 não vai discutir isso? Não vai fazer uma avaliação disso? O papel do Brasil seria se insistir nisso, numa agenda desse tipo, uma agenda internacional que coloque o dedo na ferida. É preciso fazer uma reflexão real que gere resultados. Então o risco é a Rio+20 ser uma infindável reunião de boas intenções que só gere blá-blá-blá. A pauta ficou genérica, esvaziada. O Brasil tem atributos incríveis, uma patrimônio natural incrível. Mas o que o governo está fazendo? O que está fazendo em relação ao etanol, por exemplo? Para defendê-lo? Para promovê-lo? Qual é o investimento em energia renovável? O Brasil está construindo Belo Monte, construindo no rio Madeira, no Tapajós. Está fazendo hidrelétrica em terra indígena com licenciamento por decurso de prazo. É inacreditável.

ÉPOCA – As usinas eólicas estão crescendo, o ritmo é bem forte.

Capobianco – Apesar do governo. A eólica está crescendo no Brasil apesar do governo. Não existe uma linha de apoio em relação à energia eólica. Está crescendo para surpresa do governo. O governo se surpreendeu com o interesse dos investidores. Porque na visão do governo é hidrelétrica e termoelétrica. Uma loucura. E termonuclear. Uma visão totalmente no outro caminho. A Rio+20 está ocorrendo num momento em que o mundo inteiro está com dificuldades para implementar agenda, não é um privilégio do Brasil. Mas no Brasil não é só dificuldade, é retrocesso. E o Brasil vai sediar a Rio+20 num ambiente extremamente negativo, com uma avaliação muito ruim e com uma agenda fraca. Corre o risco de ter uma Rio+20 esvaziada, o que seria muito ruim para o país.

ÉPOCA – Que país, hoje, tem uma agenda ambiental forte?

Capobianco – Muitos. Os países da União Européia, apesar da crise do Euro e das dificuldades, têm. A China tem. Está fazendo investimentos na chamada economia verde e em zonas tecnológicas de uma forma absurda. A China tem hoje o maior programa de reflorestamento do mundo, a China tem o maior programa de parque eólico e de investimentos em energia solar do mundo.

ÉPOCA – E tem os rios mais poluídos do mundo, uma das maiores emissões do mundo, carvão, o ar mais estragado do mundo...

Capobianco – Tem, claro que tem. Mas a questão é a seguinte: como é que você faz a conversão? Ela é feita a partir de soluções. Como é que você vai resolver o problema de produção de energia? Primeiro, pela eficiência, pela redução de consumo. Depois, pela questão das energias renováveis. Se você não tem um investimento pesado em renováveis, você nunca vai sair do ciclo vicioso. Se você pegar o valor de investimento em pesquisa e desenvolvimento no Brasil nos próximos anos, vai ver que o investimento em derivados do petróleo é a enorme maioria. É na contramão.

ÉPOCA – Então o Brasil é o vilão do meio ambiente?

Capobianco – Não é isso. O Brasil não é o vilão da história. O vilão na convenção de clima não é o Brasil, é a China e os Estados Unidos. O problema é como você trata a perspectiva. É isso que chama a atenção hoje no Brasil. O Brasil vinha de uma agenda crescente, cumulativa e importante na área ambiental. O Brasil fez uma opção de se comprometer com metas de redução de emissão. Foi o primeiro país em desenvolvimento a fazer isso, gerou um impacto político positivo. Você vinha num processo. E o que tem agora? Tem um refluxo. E esse refluxo vai custar caro para o Brasil. Caro porque o país vai retardar sua adaptação e sua preparação para o acirramento desse debate. Vai custar caro porque o Brasil vai encontrar dificuldade no plano internacional para obter apoio para suas propostas. Vai custar caro porque o Brasil vai encontrar dificuldade para se manter na liderança política que ele vinha conquistando. Caro porque o Brasil vai deixar de aproveitar as oportunidades econômicas da chamada economia verde.

ÉPOCA – Na sua opinião, o que o Brasil deveria estar fazendo?

Capobianco - O Brasil poderia estar aproveitando suas possibilidades com etanol, por exemplo, para estimular a redução da emissão de carbono. Hoje, porém, o cidadão vai no posto e se o preço do álcool não compensa, ele não usa. Mas e o ganho ambiental do álcool? É um processo limpo, você tem várias vantagens para a economia verde. Mas o governo não tem nem campanha para mostrar esses ganhos. Aliás, ocorre o contrário: o governo segura artificialmente o preço da gasolina, numa atitude populista, em detrimento de um de seus grandes ativos na chamada economia verde. É uma concepção pré-1992. Eu diria que é um governo primitivo na questão da percepção da importância estratégica disso tudo. Não adianta ter as pessoas com melhor renda, melhor salário, podendo comprar, se o ambiente for todo degradado, sem qualidade de vida. A visão do governo é essa: tem de aumentar o consumo. O consumo pelo consumo. Repare: o programa do governo é de Aceleração do Crescimento, PAC. Não é um programa de Aceleração do Desenvolvimento, PAD. Então o governo é pré-histórico na questão ambiental. E ao ser pré-histórico, acaba, por omissão e por ação, permitindo que o que há de mais atrasado no Brasil faça valer sua agenda. É um governo mais para milagre econômico, década de 70, do que para terceiro milênio.

Fonte: Revista Época

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